quarta-feira, 27 de março de 2024
Do conto do Pequeno Polegar
quarta-feira, 20 de março de 2024
Da história da Branca de Neve
Anões
Um, dois, três, Dunga, Mestre, Atchim. Quatro, cinco,
Dengoso e Soneca, seis e sete, Zangado e Feliz, o mais difícil de lembrar, nem
Branca de Neve saberia por que. Talvez a bruxa má: – Felicidade é ausência de dor, negação,
portanto, e suas pegadas apagam-se nas praias da memória, afeitas mais às
impressões positivas do que dói.
Deu uma gargalhada de bruxa e continuou: – Às vezes ocorre
latejar na lembrança a negação de uma ausência, nostalgia, a “dor do regresso”,
“dor do lar”, invenção de gregos, tão propensos, sempre, a sofismar.
Dialeticamente, porém, a negação do ausente é positiva, saudade, lusitanamente,
– irrrque! que voz!
– Então dói! – gritou a bruxa com autoridade maligna. Outra
gargalhada, dessas de gorar as ninhadas, e embrenhou-se na espessura, desafinada,
a resmungar: “Um, dois, três, Dunga, Mestre e Atchim. Quatro, cinco, Dengoso e
Soneca, seis, sete, Zangado e Feliz, difícil de lembrar”. (nm)
###################################
Continua na próxima quarta-feira
quarta-feira, 13 de março de 2024
Súplicas, chagas, reverências, orações e canções
(X)
Misteriosas formas heptaédricas, douradas e incandescentes, dissimulando-se em seqüências exasperantes de conjuntos de sete elementos, exaltam a exasperação de João, sete vezes tocado pelo Intangível. Mateus e Lucas se conformam às mesmas formas, às vezes, como ao fixarem espantosa oração e as súplicas, em número de sete, que ela contém e que se expandem em catadupas de luz, como as sete faces de um diamante perfeito, no Livro e no coração de muitos homens: “Pai nosso que estais no céu, santificado seja o Vosso Nome...”
As mesmas
formas se cristalizam na voz de um caboclo cantando piedosa composição, em que
o número Sete se eleva às encantadas esferas do hierático. Se, por exemplo,
refere-se às “Sete Chagas...”, por puro respeito, apropria-se de possibilidades
do cardinal que, de ordinário, não constam de gramáticas nem de dicionários.
As chagas,
tantas, sangrando por fora e por dentro, nem dá pra contar! Então ele as reduz
a “sete” por um processo metonímico que sustenta uma ideia de “todas as
chagas”: as dos açoites, espinhos, lanças, cravos, as da injustiça, e as chagas
da solidão e do abandono.
Na
intuição de almas simples, a dor e o quebranto de sete chagas tais é que teriam
suscitado, um dia, perto da hora nona, a tremenda exclamação: Eli, Eli, lama sabactâni! (Mt 27 - V46).
Pois é. Homens rezam e imploram, sempre imploram, e cantam. Sempre cantam. Onde, porém, a correspondência mágica com caprichos nem sempre evidentes do número Sete? Não na oração do Anjo Anunciador, que se eleva na voz de Pavarotti até as esferas mais altas: Ave gratia plena... Pura reverência! Na interpolação, depois do Mensageiro, a súplica mais pungente: Sancta Maria, Mater Dei, ora pro nobis peccatoribus, nunc et in hora mortis nostrae.
Pungente, também, a Oración Caribe, de Agustin Lara, coisa do século passado, quase uma antiguidade que Toña la Negra, intérprete preferida do compositor, mantém sempre viva, sempre emocionante, como se cantasse no mais alto do templo mais alto de Teotihuacan:
Oración Caribe, que sabes de implorar, Salmo de los negros, oración del mar! Piedad, piedad para el que sufre, Piedad, piedad para el que llora. (...) Un poco de calor en nuestras vidas un poquito de luz en nuestra aurora...Na Oração de Dorival Caymmi a Mãe Menininha, nem há súplica, só reverências, sete ou mais. Bethânia e Gal, vozes de muitos anjos, fazem com que cada uma chegue ao Gantois, a Mãe Meninha, a todos os Santos da Bahia, a todos os Orixás:
Ai, minha Mãe
Menininha,
Menininha do Gantois:
A beleza do mundo, hein? Tá no Gantois
E a mão da doçura, hein? Tá no Gantois
O consolo da
gente, hein? Tá no Gantois
E a Oxum mais bonita, hein? Tá no Gantois
Olorum quem mandou essa filha de Oxum
Tomar
conta da gente e de tudo cuidar Olorum quem mandou ô ô, ora iê iê ô...
Ora iê iê ô, Dorival! Saravá, meu rei!
(nm)
#################################
quarta-feira, 6 de março de 2024
Cartas de pastoreio pelos campos da Ásia Menor
(IX)
João, pastor, tange com palavras, umas, contundentes, outras, pura música. Como a ovelhas, apascenta Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia, sete igrejas, por prados ásperos da Ásia Menor. Tem o rijo bordão de Jacó e, às vezes, a flauta suave do Grande Pã:
A Éfeso: Laboriosa, paciente, atenta aos falsos apóstolos. Tenho contra ti, porém, que deixaste teu primeiro amor.
A Esmirna: Pobre, mesmo sendo rica, esperando com
resignação a tribulação anunciada.
A Pérgamo: Desde os dias de Antipas, habitando onde Satã
habita, sem renegar a Palavra. Melhor que São Pedro.
A Tiatira: Operosa, diligente e amorosa, da fé regou a
encarnada rosa. Mas tolerar essa Jezebel dizendo-se profetisa!... Intolerável.
A Sardes: Desatenta e relapsa, só uns poucos dos seus
vestir-se-ão de linho branco.
A Filadélfia: Frágil, guardou com firmeza a Palavra. Quando
for chegada a hora, será coluna no Templo.
A Laodiceia: Frouxa nas obras, nem fria nem quente. Por
morna, diz-lhe o pastor, “vomitar-te-ei da minha boca”.
Sinais
Como pastor, não poderia ter sido mais zeloso: “Eu
repreendo e castigo a quantos amo”. Como testemunha, João é sóbrio. Bastam-lhe
Sete Sinais para pontuar o plano da Redenção: a água transformada em vinho nas
bodas de Caná; a cura de um jovem em Cafarnaum; a de um paralítico em Betesda;
a multiplicação dos pães e dos peixes. À noite, o mais lírico dos sinais, uma
caminhada sobre as ondas do Mar da Galileia; a cura de um cego em Silo‚ com
barro da saliva e pó da terra, terá sido um sinal singelo. O sétimo é o mais
dramático, a ressurreição de Lázaro.
“Mestre, se Tu estivesses aqui, meu irmão Lázaro não teria
morrido.” A interpelação de Mar-ta, irmã de Maria, que havia enxugado com os
próprios cabelos os pés do Rabi, depois de lavá-los e ungi-los com ungüento
perfumado, não podia ser mais patética. E Lázaro levava quatro dias de morto e
enterrado. O Rabi chorou com as mulheres, depois chamou Lázaro da tumba e o
ressuscitou.
Mesmo num âmbito em que milagres fariam parte do cotidiano,
a alteração de um consumado desígnio da Morte terá sido algo estarrecedor. O
Sétimo Sinal do Evangelho de João, tocado sete vezes pelo Intangível, é, pois,
o da Ressurreição e da Esperança, contra as quais a besta do Sétimo Selo não
prevalecerá. Esperamos (*).
(*) Depois de ler o Romance d`A Pedra do Reino e O Príncipe do Vai e Volta, Galdino, irmão de fé e de andanças, mandou-me o livro. Em letra de forma, com esferográfica, ele escreveu na falsa folha de rosto do volume, ainda sob a viva impressão do mergulho que dera naquele universo escatológico de Ariano Suassuna, a seguinte mensagem: “Ao (...) Cão da molesta, (,,,) pra que a onça macha-e-fêmea da vida e a bicha-mundo te manere a mão e a Bicha Bruzacã não te pegue não”. De algum modo, isso ajuda, a quem de direito, compreender que Sertão é um pouco deserto e Ariano um pouco São João. (nm)
################################
Continua na próxima quarta-feira