“Mentideiro” é palavra quase
extinta, de tão pouco que circula, mas está consignada em verbete do Aurélio
como lugar onde se inventam e propalam boatos. Mas, é também assembleia
informal e, como as assembleias, em geral, muito bom para a conversa fiada. A tv, como antes dela o rádio, há muito percebeu as possibilidades do mentideiro
e, com muita desenvoltura, delas se apropria, adaptadas aos próprios interesses. Junta quatro, cinco ou mais
pessoas numa discussão e opera milagres: muitos telespectadores assumem a
conversa como se, de fato, tivessem participação nela. Em temas como política e
futebol, entre outros que não requerem abordagem precisa e a opinião dispensa fundamentação
coerente, dependendo mais da autoridade de quem opina, consegue criar a ilusão
do grande mentideiro universal, multilateral, virtualmente aberto a todos.
A cibernética oferece a hipótese da
interatividade perfeita, mas dez, vinte ou mesmo cem mensagens selecionadas e
editadas não podem sustentá-la nem constituir amostragem relevante dos “amáveis
telespectadores”. Mas funciona, sobretudo em programas de entrevistas em que um
ou mais entrevistadores arguem autoridades e celebridades, ou
naqueles debates que envolvem muitas pessoas ao mesmo tempo, jornalistas e gente de outras áreas,
donas-de-casa, psicólogos, com muita gente falando alternadamente em conversas
que teriam algo do mentideiro convencional, mas submetido a regras e limites que o constringem e descaracterizam, espoliam-no de sua
vitalidade. E tem todo aquele bom-mocismo, irrque!
Bem-comportada, direcionada,
sempre chega onde deve chegar. Mesmo quando a conversa da tv parece caótica,
desencontrada, está atrelada a temas definidos a priori e a algum objetivo, a um roteiro que torna improvável o
surgimento de um enfoque diferente. Faltam-lhe as contribuições
descompromissadas que engendram, constroem e enriquecem as histórias.
Numa avenida das avenidas do
Brasil, um café congrega aficionados de futebol, quase todos maiores de
sessenta, que discutem campeonatos, jogos, times, contam histórias, fazem-se
provocações, apostam e, sobretudo, divertem-se com a conversa... A assembleia
não é dentro do café, mas no passeio, aberta à participação de quem quiser. Se
um juiz de futebol não marca o pênalti flagrante, ali não há contemporizações:
– Que caradura, hem! Juiz sem-vergonha, ladrão!
Em contraponto, na TV, a
desconversa fiada: “o juiz não achou
que foi falta, por isso não marcou”; “o juiz é um homem de bem”; “o juiz é um
homem honrado” – Como Brutus? – ou “o juiz teve um `apagão´ e não viu o pênalti”...
Mas discute-se em tom solene se não seria o mesmo “árbitro” portador de alguma
disfunção cerebral, uma arritmia, epilepsia ou outra coisa que o
desqualificasse para juiz. E não falta retórica que, na maioria dos casos, só
faria sentido para uma liga que, de repente, viesse a precisar de um
“apagãozinho” estratégico: “não se pode prescindir de um grande juiz apenas por
uma falha. Afinal, todo juiz erra, não é mesmo?” Aí, alguém repete como uma
senha alguma história velha, de algum campeonato velho, e todos mudam
alegremente de assunto.
O grande mentideiro universal pode
ser uma exigência do processo de massificação em escala planetária, mas ainda
não prevaleceu. O mentideiro de verdade(!!!)
sobrevive em muitos lugares, múltiplo, diversificado, vivo, humano, mas,
sobretudo, no bar (*), no botequim ou onde quer que um pouco de embriaguez, ou
mesmo um porre, assegure fulcro e fluidez à conversa fiada sem predispor
ninguém a ceder nada no domínio de sua vontade nem a deixar que sua opinião
seja puxada para lá e para cá por uma cordinha, feito cachorrinho pequinês.
Cerveja e outros fermentados, e
algum destilado de mais espírito, favorecem a pluralidade, a diversidade, a
diferença, enfim a dialética da vida, contra as ambições mais perversas do
Grande Irmão de apropriar-se dos canais de expressão e da cultura e impor a
palavra incontrastável – sem indagações, sem contestações – monopólio de mentes
e corações. Para denunciar armas de destruição em massa, para legitimar um
campeonato roubado, um “impeachment”, uma guerra, o que seja, e para condenar o
inimigo público eterno: Goldstein, Hussein? Deus me livre!
(*) Tânio, meu irmão de muitas
etilidades, que não ligava pra desportos, mas gostava de chope, de uma
cachacinha... dessas de macio descer: “Na animação do bar, até conversa de
futebol tem sabor.”
(NM)
Caro Nilseu
ResponderExcluirNós dois somos entendidos de mentideiro.Vivemos dentro de um, composto por algumas milhares de pessoas, poucos milhares é verdade, mas de um funcionamento impecável, tanto na sua eficiência, quanto na sua perenidade.Ainda hoje , lá está, em vigor pleno.Apenas com as variantes impostas pelas modernidades, mas fiel na essência. Seus textos estão cada vez mais surpreendentes, não só pela beleza estrutural como pelas singularidades dos temas.Vêm de longe, ora do Império Romano, ora das profundezas do sudoeste das gerais e reincidentes de terras de Espanha.
Um abraço apertado.
Paulo Sérgio
Ô Paulo,
ResponderExcluirObrigado, mais uma vez, por nossa velha e sempre renovada cumplicidade. Sem esse tipo de manifestação, O&B não se sustentaria nem um dia na rede. Grande abraço
Olá, Nilseu,
ResponderExcluirParodiando sua amiga Ângela, que por sua vez se inspirou em Drummond, perdi (poucos minutos, infelizmente) ganhei bons momentos de prazer. Continuo agradecendo essa gostosura de prosa e cultura.
Ah, tomei a liberdade de indicar a leitura de suas crônicas a um amigo/irmão meu, o Pedro Borges, filósofo, professor de português, colega meu de faculdade, de Pitágoras (por 30 anos) e de bar (por uns 50 anos, até agora). Não sei por que não fiz isso antes. Em "esprit", vocês se parecem demais.
Abração.
Sinval.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirÔ Sinval,
ResponderExcluirComo sempre, você enriquece O&B com seus comentários e alenta um blogueiro muito vaidoso dos amigos que tem. Obrigado. A inclusão do Pedro Borges entre meus cúmplices me alegra demais. Falta o endereço eletrônico dele para minha lista. Grande abraço,
Nilseu
Prezado Ocioso & Bagatélico, sensacional o post, não conhecia o termo "mentireiro", ótimo! Abração (de verdade)
ResponderExcluirÔ Fabbrini,
ExcluirOciosa e bagatelicamente manifesto o muito que apreciei seu comentário. "Mentireiro" não está no Aurélio, mas é muito bom. Grande abraço
Adorei o Mentideiro...não conhecia, rsrs.... E muito perigoso, reli o Grande Irmão recentemente procurando entender melhor o Mentideiro atual... "Junta quatro, cinco ou mais pessoas numa discussão e opera milagres: muitos telespectadores assumem a conversa como se, de fato, tivessem participação nela". Perfeito!
ResponderExcluirOi, Nilseu,
ResponderExcluirmentireiro está não só no Aurélio (minha edição deve ser mais veterana), mas também no mais recente VOLP, editado pela ABL. Quem sabe a gente deva sugerir às TVS que, para melhorar os múltiplos ramerrões, enriqueçam os seus com 'cerveja, outros fermentados e algum destilado de mais espírito', num toque de bar que enriquece e anima qualquer papo? Ou estaríamos afrontando a cultura de botequim?
Ô Luiz Fernando,
ExcluirO que me ocorre é que gente virtualizada demais é capaz até de desinventar o boteco. O melhor é deixar quieto; Grande abraço
Como sempre, adorei!!!! Já tinha me esquecido dessa palavra, que você resgatou com tanta propriedade. Agora voltarei a usá-la. Um abraço. Raquel
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