– O Grande Pã está morto!
– Jura?
Do-ré-mi, do-ré-mi, do-ré-mi!!! As esferas escapando-se para a escuridão gélida de lonjuras sem fim. Do-ré-mi, do-ré-mi, retalho de harmonia, vibração ínfima lá longe entre as esferas se escapando que, nem de leve, tocará o espírito dos deuses ou os corações dos homens nem quaisquer sonhos de amor e liberdade que tenham tido. Exorbitado cometa se estrela feito ovo na frigideira contra a Lua, fragor de muitas águas, sideral clarão, prenunciando o Caos Primordial prestes a irromper.
Em grande desorientação, as Parcas dão voltas em volta da Grande Fogueira da Desordem, mariposas em volta da lâmpada de Adoniran. É menos que metafísico, isso, mas não poderia ser mais aterradora a perspectiva: nada mais para morrer, nem homens nem deuses, nem peixes, nenhuma planta ou animal, todos os espíritos, os bons, os maus, todos mortos. Em lágrimas, elas antecipam a morte da Morte, desmanchando-se em lamentações de verônica: O vos omnes qui transitis per viam...
Nunca mais o azul, nunca mais; flores brancas e violetas dos manacás, nunca mais! Vê-se logo como se assanha o corvo de Allan Pöe. As Fiandeiras conjeturam sem grande consenso sobre o Não-Tempo que se avizinha e apenas tangenciam o Não-Nunca, assim mesmo como impossibilidade. A Parca mais velha: – Que extravagância! Tempo, Não Tempo, disco! A roda... O Nunca e o Nada para Sempre? Nada e Não-Sempre, hem? Difícil, muito difícil, dialética mais esquisita! Todos esses paradoxos...
Em devaneio, a mesma Parca: – Não pode ser que em alguma vastidão esquecida pra lá do Cosmo emerjam, de devastador encontro de galáxias, Tempo e Espaço em limitada circunscrição suficientes para o brando ressoar da flauta do Grande Pã? Do-ré-mi, do-ré-mi... Não, não, amigas. Pouco importa que vacile a Eternidade dos deuses se o cataclismo revelar a Grande Cona do Universo para que dê à luz a própria luz do dia, o esplendor da noite, a rubra Aurora, um Planeta azul tal qual o de Gagarin e esplêndida Lua, quatro quartos de sombra e luz, cada um com seu mistério.
Águas, mares, animais grandes, pequenos; em rios encachoeirados, cambevas escorregadias, lambaris, muito peixe em pacatas lagoas verdes; borboletas azuis no escuro de florestas que, talvez, gnomos de orelhas grandes habitem; claros jardins, rosas de muitas cores, néctar, mel, abelhas a zumbir; sanhaços e jabuticabeiras no frescor de altos pomares e, sem descanso, cigarras, o canto chiado; tzzziiiiiiii-tzzziiii. Os homens, ah, os homens, aptos alguns a instituírem-se em demiurgos e hierofantes para, com recém adquirida consciência da morte, criar novos deuses e erigir seus templos.Que,
então, a flauta outra vez ressone! Do-ré-mi, do-ré-mi...
Diante da roca: – Até lá, não estaremos todas mortas, de tédio?
Lançam-se elas três
na Fogueira da Desordem e se deixam incinerar.
(NM)
Que susto, Nilseu! Ainda bem que ressurgiram as borboletas azuis e o ressonar da flauta, para recriar o mundo, a bela lua, o homem, a mulher, os deuses e todas as nossas imperfeições!
ResponderExcluirPois é, Marília. Apenas temos um velhinho que quer seu planeta de volta.
ResponderExcluirPai, adorei!⭐
ResponderExcluirValeu, Filhote. Uma estrela para você também. De Belém.
ResponderExcluirO lamento das filhas de Têmis, antevendo a morte da Morte, é uma profunda reflexão.
ResponderExcluirSérgio Prates
Ô, Sérgio: Sua consideração generosa sempre distingue este O&B. Obrigado
ExcluirNilseu, agradeço pelo presente de Natal: seu texto, tão cuidadoso e elaborado. É admirável como você consegue manter a qualidade mesmo saindo da temática usual das suas crônicas. Neste texto, você se superou, ao processar um irreverente e saudável retorno ao paganismo em pleno clima de Natal. A oposição de Pã, deus da exuberância da Natureza, às moiras, em especial à implacável Átropos, é aparente, pois , na verdade, o eterno ciclo de cosmogonias e escatologias, tão bem sugerido por você, tanto no plano intergalático como nas mais simples formas de vida, é que dá não só à vida, mas também à morte, seu significado. Mas a beleza maior é a mensagem de otimismo com que vc encerra seu texto: a flauta de Pã continuará soando, pois a Vida é insistente, achando seu caminho, mesmo que nosso mundo esteja condenado. Obrigado pelo seu presente e parabéns pela performance!
ResponderExcluirJosé Maria Santos
Obrigado, prof. José Maria. Sua presença sempre ilustra este O&B e seus comentários alegram o coração do blogueiro, que gosta demais de compartilhar suas pequenas aventuras literárias.
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