Ao retornar de pequena viagem, no início desta semana, Danilo Andrade, amigo do blogueiro deu a notícia: – O Flávio... você está sabendo? Claro que não está. Pois é. Nem deu pra lamentar. Permaneceram em silêncio por um tempo, o da reverência, antes de poderem falar da convivência com o grande amigo. Flávio, às vezes, deixava, de propósito, passar a impressão de uma imaginação delirante, mas era de uma lucidez meridiana, que iluminava quaisquer temas que se propusesse a abordar. Como redator, impressionante: podia encher uma página standard de jornal numa única sentada diante de uma “Remington” mecânica. O livro “Escritores Famosos e Autores Anônimos”, que publicou sob o pseudônimo de “Yamanes Gorri”, é leitura edificante e prazerosa.
Como jornalista de ofício e vocação, trabalhou para grandes e
pequenas publicações, sempre com
apreço à palavra e à verdade, que não descurou
nem nas mais jocosas abordagens a que se permitia nas tertúlias do Clube do
Livro Aberto – CLA, que ele inventou e nutriu com espírito generoso e
brilhante. Éramos jovens, e Flávio sempre lúdico diante da vida: soube, desde
sempre, Schoppenhauer também sabia, que a alegria é o melhor que podemos
almejar e cultivou-a mesmo em situações adversas. Felicidade? Não, ele nunca
pensou nisso. Contentava-se em levar a vida contente. E levou até o fim.
O CLA? Bom, o CLA nunca passou de uma pequena confraria de amigos a que o Flávio deu corpo e espírito com lastro na palavra escrita ou na conversa fiada. Era também muito comer e beber, senão, convenhamos, não dá pra conversar. Muitas e inesquecíveis tertúlias que Carolina Esser começou a secretariar, isto é, a ler muito compenetrada as atas em estilo macarrônico da sessão anterior, desde seus cinco anos. Geralmente escritas por seu pai, o jornalista Sérgio Esser, ou pelo próprio Flavio, às vezes pelo Carlos Pereira. Os frequentadores habituais das sessões? Sérgio Esser, Sandra, Carlos Pereira, Célia, Gilmar Vila Nova, Nádia, Marcelo Prates, Daniel Esser, Mariana, Danilo Andrade, Flávio Valle, Juana Friche, Ismael Antuña, Denise, este blogueiro, Rosa e muitos ocasionais. O clima do CLA foi tão bom que, mesmo sem “ter piscina” teve uma longa e alegre existência. Ô, Flávio, muita saudade de todos nós.
Na sessão de 3 de maio de 97, na casa do blogueiro, à sua
maneira encantadora, Carolina Esser leu uma crônica:
Todos os
pássaros
Numa esquina das esquinas de Belô – Bahia com Antônio
Albuquerque, ou seria Paraíba com Santa Rita Durão? – difícil estabelecer com
precisão, mas não importa, deparei-me com o grande pássaro. Havia uma névoa
fina como sede de Samarcanda vestindo a cidade naquele começo de noite. Sem
atravessá-la de verdade, uma lua pálida de abril apenas a tornava brilhante,
ressaltando as silhuetas dos prédios e transformando em vultos os passantes. Os
postes de iluminação ficavam pisca-piscando no meio da bruma como se fossem
fantasmas e, por um momento, cheguei a indagar se estava mesmo na nossa cidade
amada. Bobagem. É claro que a gente estava.
O grande vulto alado e eu não nos reconhecemos de pronto,
mas ele foi se aproximando e a luz fantasmagórica do poste, ajudada por uma
dissipadora lufada de vento, nos pôs a conversar como velhos amigos. Ele contou
que nem sabia direito por que resolveu sair de seu ninho na montanha para andar
pela cidade no meio da neblina. Mas o fato, em si, não chegava a contrariar de
todo seus hábitos que, ao seu próprio alvedrio, podiam ser de ave noturna, da
aurora ou do dia claro, como ele mesmo admitia com benevolência. Nem me causava
espanto, pois as possibilidades são várias, quando estamos diante de realidades
ontológicas que estão muito além da ornitologia vã, preocupada apenas em
estabelecer axiomas rígidos, em formular postulados que, na prática, atuam como
camisas-de-força, justo quando a liberdade nossa repousa, precisamente, na
loucura de cada um.
O grande pássaro que, há tantos anos que nem sei, aceita-me
como interlocutor, é condor. Mas também é beija-flor, sabiá laranjeira e branca
garça. ´, ainda, o pássaro roca, canário, gaivota, corrupião e azulão – porque
não? Ora, guardar essencialidades de
cada pássaro é, de fato, ser todos os pássaros, conforme a melhor razão
ontológica. Assim, ao falar com o grande pássaro que encontrei na bruma naquele
começo de noite numa esquina das esquinas de Belô, sabia que estava falando com
o passaredo todo.
Ele ouviu muito e pouco falou, mas esse pássaro vário,
plural, todos-os-pássaros é assim mesmo. Perguntei-lhe se ele ainda busca os
píncaros da Serra do Curral em noites claras para ficar assuntando, lá daquelas
alturas, a azáfama e bulício da nossa cidade. Fez que sim com gesto discreto. Em
seguida, pôs-se mais animado e disse que, realmente, gosta de ficar olhando as
coisas desde lá de cima, não por presunção ou elitismo, mas para uma percepção
de conjunto que não se alcança sem algum distanciamento. Com a visão favorecida
que tem, nem um detalhe lhe escapa. Na semana anterior, por exemplo, ele se
havia surpreendido com a enormidade de uma correição de formigas lava-pés no
Parque Municipal, deslocando-se de um canteiro para outro numa operação tão
grande complexa que até sugeria a retirada de Dunquerque.
Do mesmo sítio, o grande pássaro às vezes passa horas, noite
adentro, olhando para o céu constelado, perscrutando as vastidões das siderais
campinas. Uma vez, lobrigando por uma fresta bem acima da cabeça do Cão Maior,
depois de estar muito tempo quedo, fascinado elo esplendor da grande Sirius,
viu uma jovem belíssima se banhando num riacho. Todos, homens e aves reconhecem
a generosidade do céu e não poupam esforços para visitar as nebulosas, as
estrelas, conhecer os desvãos da Via Láctea nem que seja nessas naus que
singram de u quadrante a outro os mares dos nossos sonhos. O grande pássaro, ou
Todos-os-Pássaros, que encontrei na bruma sempre vai a toda parte, percorre
todas as imensidões. E nem se importa se, em muitos lugares nem lhe consigam
pronunciar corretamente o nome: Flávio Friche
(NM)
Que triste notícia.
ResponderExcluirTristeza. Flávio Friche um querido!
ResponderExcluirIsmael, há pouco tempo atrás, falava sempre sobre o Flávio Friche, querendo muito ter notícias dele. Saudade!
ResponderExcluirMeus sentimentos pela passagem do seu amigão Flávio.
ResponderExcluirZezé
Justíssima homenagem a um bom companheiro. Grande perda.
ResponderExcluirAriosto
Nilseu, só fiquei sabendo hoje, aqui, do falecimento do amigo e colega de faculdade Flávio Friiche. Anteontem, caminhando diante do prédio onde ele morou com Joana - outra colega também falecida, procurei em volta na esperança de encontrá-lo. Acho que você fez justiça a ele. Pena que os bons morrem cedo. Abraço,
ResponderExcluirJosé de Castro
Venho prestar-lhe minha solidariedade e meu pesr. Realmente uma grande perda irreparável. Forte abraço.
ResponderExcluirWalter Garcia
NIlseu, meu caro:
ResponderExcluirQue notícia ruim para os amigos do Flávio. Foi um duro golpe, né?
Uma geração de gente boa está nos deixando, e como isso dói...
Vou fazer minhas preces em homenagem ao amigo que partiu.
Um abraço.
Amaury Machado
Nilseu. Todos sentimos. Tentamos te avisar. Eu e o Manoelzinho. Foi uma grande perda...
ResponderExcluirPanther
Caro Nilseu, belo texto e homenagem comovente. Mando meu abraço, saudades do CLA.
ResponderExcluirSe alguém perdeu o Flávio, alguém o recolheu e ganhou! Flávio continua um prêmio eterno!
ResponderExcluirÔ, Daniel, é isso aí.
ExcluirCaro Nilseu,
ResponderExcluirObrigado por mandar a sua homenagem ao Flávio Friche. Infelizmente, não conheci o seu amigo, mas pela sua descrição e pela foto era uma ótima pessoa e agradável companhia. Que tenha tinha uma boa vida e descanse em paz. Abração,
Daniel.