segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Roteiro lírico, geográfico e sentimental da estante do Ismael Antuña

 O Clube do Livro Aberto – CLA sofreu baixas irreparáveis neste ano de 2022, a mais recente, do Flávio Friche, que foi embora no começo deste mês. Em meados de agosto já nos havia deixado Ismael Barreto Antuña, depois de haver enfrentado insidiosa enfermidade com sua habitual bravura. Enquanto ele esteve conosco cultivou com apreço e generosidade as melhores possibilidades da nossa confraria etílico-literária, cujas tertúlias sempre acolheu com alegria e entusiasmo em sua casa, no espaço cultural “No Pasarán”, assim batizado em homenagem a Dolores Ibarruri, a Pasionária, onde os convivas do CLA, em mais de uma ocasião, foram privilegiados também por muitos refinamentos gastronômicos de Denise. 

Quem viveu as sessões do CLA, intermináveis, teve oportunidade de desfrutar da conversa rica, bem-humorada, alegre, que seu espírito superior jamais sonegou a quem quer que fosse. Sonegar, mesmo, ele sonegou seus escritos, que ainda estariam guardados se seu filho mais velho, também Ismael, não tivesse repassado a este O&B o poema “Roteiro lírico, geográfico e sentimental da minha estante” e umas confissões/revelações que ele consignou como “Algumas notas sobre o autor, que ocupa o honorífico e bem remunerado cargo de Primeiro Ministro Permanente do Clube do Livro Aberto”. O título pomposo foi-lhe outorgado pela autoridade do Flávio Friche e, por pura diversão, ele incorporou. Excelente a remuneração do CLA ao ministro, porém, meramente afetiva.

ESTANTE (I)

Na minha estante só habitam

Santos e Indignados

España em Llamas

Rua da Bahia 884.

Guarda também mapas das ruas das cidades do mundo,

da República Socialista Popular de Belo Horizonte,

dos Estados Unidos da América do Norte,

das Europas y

Astúrias.

Oviedo, Detroit, Amsterdam

e de Madrid.

Aonde vais José?

José Ribamar Ferreira Gullar vomita seu poema sujo de azul

e cavalga los caballos del pueblo:

“A galopar, a galopar,

hasta enterrarlos en el mar”

Uma garrafa de vinho vazia compõe a natureza morta

em minha estante.

ESTANTE (II)

Pela manhã é a melhor hora para se arrumar a estante.

O livro sendo tocado,

trocado de lugar.

E também aqueles pequenos objetos espalhados pelos vãos:

O touro de veludo

(todo corazón arriba!);

O avião de plástico

(que bom! de asa quebrada);

a bandeira.

Afasto um santo de barro da frente de Drummond

(que suspira aliviado)

Arrumação feita,

agora Vinicius conversa com Neruda,

que conversa com Federico,

que conversa com Emílio,

que conversa com Machado,

que conversa com Vinicius.

Drummond me manda uma banana.

Algumas notas sobre o autor, que ocupa o honorífico e bem remunerado cargo de Primeiro Ministro Permanente do Clube do Livro Aberto

Montanhês, nascido em Belo Horizonte, no bairro Bonfim, filho da Rua da Bahia com a Imprensa Oficial.

Ali passou a infância, na fronteira com a Lagoinha, e também na rua Guajajaras, cercanias do Mercado Central. Cursou o primário na Escola de Aperfeiçoamento (entra burro e sai jumento). Antes, aprendeu a colorir com a D. Alice Santiago.

Mais tarde, a família migrou para a Barroca. Foi aluno do Colégio Marconi, do ginásio ao científico, onde punha fogo (literalmente) em salas de aula, nadava e jogava futebol.

Apaixonadíssimo, namorou uma moça (por codinome Denise) durante dez anos. Namorava no centro da cidade – quadrilátero formado pelas ruas Carijós, Curitiba, Tamoios e Av. Paraná – em meio a bondes, transeuntes, procissões, vãos e desvãos de prédios e vitrines, compondo, sem saber, uma lírica e singela poesia urbana.

Casou e gostou. Tanto é, que está casado até hoje. Mas continua namorando a Creusa Denise.
Tudo o que sabe, o que não é muito, mas também não é pouco, aprendeu no balcão da Charutaria Flor de Minas e lendo Monteiro Lobato.

Tido por muitos como advogado, por outros como coronel (da reserva), e por alguns como professor (de matemática e de línguas), até por pastor (de almas), no entanto é engenheiro diplomado. A Cemig pode confirmar.

Na realidade, o que ele queria mesmo ser era engenheiro naval, talvez influenciado pela Emilinha Borba cantando “Cisne Branco” (Qual cisne branco em noite de lua, vou navegando por mar azul...) ou mesmo por sempre ter sido chegado a um risoto de camarão, lulas en su tinte, paellas marineras e que tais.

Passou os cinco anos do curso de engenharia em amenas conversas com diletos e irresponsáveis colegas, entre eles, Nelson Bochechinha, Marcus Vinicius Lopes e Adailton de Alcântara Ferraz – o Francês, conversas sobre cálculo matricial, futebol, política, graças femininas, geometria descritiva, cinema, literatura, pintura, hipérboles e parábolas, pelos diversos bares e cafés da cidade – Paxá, Gruta OK, Elite Velha, Tip-Top. É desse tempo a questão – sem resposta até hoje – “Paralelas se encontram no infinito. E corações aflitos, muito aflitos?” Saudade – como diria Pedro Nava.

Já foi gago, mesário em eleições federais, estaduais e municipais. Pedro I em teatrinho escolar, aluno de piano. Sem traumas.

Fez análise freudiana, porém nunca deitou no Divã de Tamarit. Antes da análise tinha medo do anoitecer, da chamada Hora do Angelus. Hoje é louco por happy-hour. Gosta de beber, não tem importância se sozinho (que no seu caso é com uma verdadeira multidão). Naturalmente whisky (com gelo e água cristal).

Místico de carteirinha, reza e acredita em Anjos da Guarda. Aliás, acha o seu de primeiríssima qualidade.
Torce pelo Botafogo (há mais de 50 anos) e considera o fato uma de suas poucas verdades verdadeiras.
Acompanha o Partidão desde 1955, e continua acompanhando, solidário com “Seu” Olímpio e com Oscar Niemeyer.

Por fim, diz que repetiria tudo o que fez na vida, porém com mais coração, mais Arte e menos siso.

Um comentário:

  1. Nilseu, que maravilha! Que homenagem mais tocante! Quantas saudades deste meu irmão querido...

    ResponderExcluir