quarta-feira, 29 de maio de 2024

O blefe do blefe


Muita petulância, hem?

O sujeito sapeava um carteado. O jogo? Truco. Começou a conjeturar a respeito e acabou em fatuidades. “Interessante. Não empata de jeito nenhum e ainda acha de desempatar muita mão de empenho! Diante de um três, de uma dama, de um valete de qualquer naipe, faz bela figura, embora, confrontado com qualquer outra manilha, empalideça e se apague. Mesmo em boa democracia, muita hierarquia. Pra carta, assim, limitada, a gente pode até achar que há uma certa arrogância no caráter do Sete de Ouros”. Continuou sapeando, mas distanciou-se do jogo: “Esse tipo de soberba não é raro entre as pessoas e expõe, tanto em jovens quanto em velhos, todo o ridículo do descuido com a vaidade; nas mulheres, sobretudo de insólita boniteza, manifesta-se mais como petulância, o que em nada as desmerece”.

De repete, a trucada ruidosa, escandalosa, como é de lei nesse jogo de muito barulho. E um blefe. O pensamento muda de direção, o sujeito dá-se conta de que aquilo atenta abertamente contra desígnios muito bem estabelecidos das cartas, que a gente que joga, supersticiosa, vê como entidades transcendentes, dotadas de vontade própria, sempre conspirando com dolo em desfavor de quem está perdendo. Daí as imprecações do tipo “desgraçado”, “baralho filho da mãe!”.

Mas tu podes fingir que as cartas te amam, pelo menos “daquela vez”; não estão em tua mão, mas finges que estão e pode ser que dê certo. Eis a suprema distorção do jogo e do Destino, da vida, em tudo diferente daquelas imanências que talvez possam ser inferidas de “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, o poema tipográfico de Stéphane Mallarmé (Un coup de dés jamais n'abolira le hasard). Capricho da sorte, do acaso, das cartas? Perdoem-nos Santo Agostinho, São Tomás, São Boaventura e quantos mais: não há transcendências nem imanências que resistam à esculhambação de um bom blefe. Isso não é simples: às vezes o jogador dá “pala” de que tem jogo quando realmente tem. E pode fingir que não tem, quando não tem nada mesmo. É tudo um embuste, cujo ponto mais alto seria o “blefe ao quadrado”, que Jorge Luis Borges refere no primoroso ensaio, “El truco”, em que conta de dois mascates, Mosche e Daniel, a cumprimentarem-se na metade da grande planície russa:

– Onde você vai, Daniel? – disse um. – A Sebastopol – disse o outro.

– Você mente, Daniel. Diz que vai a Sebastopol para que eu pense que vai para Nijni-Novgorod, mas você vai mesmo é pra Sebastopol.

Quando publicou isso, na década de trinta, não escondeu que se tratava de um velho motivo eslavo que, aqui, ganhou foros de original, replicado para favorecer a legenda dourada de Tancredo Neves, em campanha pra presidente. Inventar piada nova não é fácil. Desde os parlamentos do Império temos adaptações de chistes europeus: minas, ouro, diamante, sabe como é, atraíram muito cristão novo. Não é de estranhar, pois, a sombra mais ou menos recorrente de mosches e danieis em variações escorregadias no tema do mineirinho sabido. O deputado José Maria Alkmim, famoso em seu tempo, meados do Século XX, foi repetida presença nelas, Tancredo menos, mas teve seus momentos:

Na estação, cumprimentam-se dois políticos:

– Vai pra Ponte Nova, doutor Tancredo?

 –  Não, pra Muriaé.

–  Ummm! ...pra Muriaé, pra eu pensar que vai pra Ponte Nova, mas é pra Muriaé que vai.

Ô, Borges! Se isso não é o blefe do blefe!

(nm)

(XIX)

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quarta-feira, 22 de maio de 2024

Arribação

(XVIII)

Esplêndido abril, os frios primeiros. Sete pássaros vermelhos, sete flechas de fogo riscando o céu alto, voam, voam decididos, velozes, sem deixar rastro no azul: rumam alegres, algum até canta, para estações mornas do Norte. É assim mesmo, é sempre assim, ao pressentirem a hora de ir embora todos partem, simplesmente partem, sem vacilar, pássaros, borboletas, lambaris....

A friagem... ah! a friagem! Um arrepio, o sujeito começa a congelar. Melhor é se lançar logo na arribada, ir-se depressa, pra longe, bem longe. Mas o frio tremendo, dentro, irá junto, certamente, a geada se espalhando, se expandindo, a infiltrar-se por todos os recônditos, por toda parte inverno atroz brrrr!!!  o ano inteiro, a vida inteira. Então, minha amiga, ir embora pra onde? (nm)

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quarta-feira, 8 de maio de 2024

Lembranças da Lua e do poço

 (XVII)

                                       

         Siete Léguas, metade tordilha

              do centauro Pancho Villa




 Chakmol clareou com um pouco de luz da Lua o fundo misterioso do cenote para revelar a arca de lembranças que a água escondia no mais escuro do poço. Dentro, quinquilharias, fragmentos desconexos, cacos de memória que apenas a sonoridade incomparável de um pequeno tesouro de palavras impronunciáveis faz cintilar: Teotihuacan, onde os deuses se reuniram antes da Criação, Tenochtitlán, Chichen Itza, Huitzilopochtli, Queatzacoatl, Kukulcán... Às vezes, ecos imprecisos, Miguel Angel Astúrias, Gorostiza, Octavio Paz, a Mariposa de Obsidiana: Canta en la verde espesura // la luz de garganta dorada, // la luz, la luz decapitada. Vibração suave de muitas rosas, azuis,  as estrelas, pálidas: Sor Juana Inés de la Cruz: 

............Goza, sin temor del Hado,
el curso breve de tu edad lozana,
pues no podrá la muerte de mañana
quitarte lo que hubieres hoy gozado;

(...)

no sientas el morir tan bella y moza:
mira que la experiencia te aconseja
que es fortuna morirte siendo hermosa                                                               
y no ver el ultraje de ser vieja.

Hernan Cortez, Malinche, Guatemoc, Miguel Hidalgo, Maximiliano, Benito Juarez. Zacatecas, Torreón, Parral, Chihuahua, Morelos, Oaxaca... Pancho, Tomás Urbina, Panfilo Natera...  Emiliano Zapata, Francisco Madero, Pascual Orozco, Álvaro Obregon, Venustiano Carranza, Enrique Flores Magón, seu irmão Ricardo... Então um ditador velho vira frase, uma única frase, e nela sobrevive até hoje. Que metamorfose! 

"general-porfirio-dias-pobre-méxico-tão longe-de-

deus-tão perto-dos-estados unidos"

Tanto pelear y pelear... Mire usted, mi general, yo que fui un hombre valiente (...) quiero que usted me afusile en público de la gente, ”mañanas” tristes de Benjamin Argumedo; Mariachi Vargas de Tecalitlan, La Adelita, outra Adelita, todas as Adelitas; “Con las barbas de Carranza, voy hacer una toquilla, pa ponerle en el sombrero, del señor Francisco Villa // La cucaracha ya no puede caminhar...” Mas “o petróleo é nosso”, hem, presidente Lázaro Cárdenas!

Maria Felix, Maria Bonita, Maria del Alma, versos de Agustin, voz de Jorge Negrete. José Alfredo Jimenez propõe “adiar el olvido al estilo Jalisco”, mas esses modos “tapatios” de procrastinar esquecimento são um tremendo enigma, não são?  Frida Kahlo, Leon Trotsky, Diego Rivera, Siqueiros, Cantinflas, La Teibolera Lila Dawns, som de jade e prata:  Cantame Tacha, una rancherita de esas bonitas, de esas que a un hombre lo hacen llorar...

Chiapas outra vez, o Subcomandante Marcos, outra vez Zapata!

Celebrar o agave, o henequén. Tequila, a tequila... É de bom alvedrio levar em conta a liturgia do destilado, seu ritual: canção de Cuco Sanchez sugere “una pura y dos con sal”. Brindemos: “Arriba, abajo, al centro, pa dentro.” Vale! E cantemos: Volaron los pavorreales rumbo a la Sierra Mojada. // Mataron a Lúcio Vazquez...

Amado Nervo celebra grandíssimo amor no poema que virou tango:

El día que me quieras tendrá más luz que junio;
la noche que me quieras será de plenilunio,
(...)
Las fuentes cristalinas
irán por las laderas
saltando cristalinas
el día que me quieras.

El día que me quieras, los sotos escondidos
resonarán arpegios nunca jamás oídos.
(...)
El día que me quieras, para nosotros dos
cabrá en un solo beso la beatitud de Dios
. (nm)

Teotihuacan, Tenochtitlán, Chichen Itza, Huitzilopochtli, Queatzacoatl, Kukulcán...

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quarta-feira, 1 de maio de 2024

Nas voltas do Mundo, o sempre possível reencontro

(XVI)
Adrasto, Polinice, Tideu, Anfiarau, Capaneu, Partenopeu e Hipomedonte, os sete contra Tebas e o usurpado poder de Etéocles. Podiam ter sido oito, seis, ou quantos fossem. Mas na conta dos cantores dos feitos dos guerreiros de Argos – Ésquilo o confirma – sete chefes ergueram suas lanças contra as muralhas de Tebas, um para cada porta da cidade: na sétima, irmão contra irmão.

Não venceram, mas assim é a guerra e, de qualquer modo, vitória é flor que murcha e seca muito depressa: só do lutar a flor não cessa. Epígonos assediaram com sucesso as mesmas pedras, pagando tributo oneroso ao impiedoso Ares. Duas gerações de argivos contra orgulhosos tebanos provaram só que Alegria não faz séquito à Glória: lutar, lutar, sempre lutar. Vencer, às vezes vencer, depois chorar.


Samurais e caubóis

Sete também são os samurais (Shichinin No Samurai) de Akira Kurosawa, mas quem, entre tanto japonês, lembrar-se-ia de seus nomes complicados, à exceção, talvez, de Toshiro Mifune? Se o filme, belíssimo, replica no Oriente ritmos e padrões de composição e imagem que Kurosawa sempre admirou nas obras de John Ford e John Houston, outro John (Sturges), fez a tréplica, transpondo de novo para o Ocidente, mais precisamente para um cenário mexicano de western, a saga dos guerreiros japoneses no inesquecível épico Sete Homens e um Destino. Em seu filme, Yul Brynner, James Coburn, Steve McQueen, Robert Vaughn, Charles Bronson, Horst Buchhole, Brad Dexter.

É como se esse filme realizasse a metáfora de Ouroboros mordendo a própria cauda, numa exaltação lírica da ideia de infinitude. O círculo posto em movimento confunde convenções precárias, fátuas noções de limites: onde termina o Ocidente, onde o Oriente principia, se toda hora é a hora do Ocaso e, afinal, não é Aurora cada hora? O entrelaçamento de culturas é como uma imensa brincadeira de roda em que homens e mulheres, enquanto vão girando, girando, produzem reverberações luminosas que catalisam as possibilidades mais furtivas do sem fim.

Como a Quetzacoatl dos Toltecas e dos Maias, o Midgardsormr dos Vikings, Vritra, do Mahabarata, a Hidra dos cantos homéricos, o Leviatã do Livro de Isaías, ou como quer que se queira chamá-la, a Grande Serpente que fecunda a aurora dos tempos e inaugura a História espoja-se em seu leito de espumas no Mar Imenso. Ela recebe, como piedosa oferenda, colar tão brilhante quanto o Brisingamen que enfeita o colo da recatada Freya e compraz-se em seu esplendor. Meio-Dia e Setentrião confundem-se nas grandes águas, também o Leste e o Oeste; os Tempos encontram-se em arrebatados instantes, perturbando as noções intrinsecamente vagas do princípio e do fim. No que concerne a ovo e galinha, ocioso é indagar precedência, como talvez já tenha advertido Zaratustra. (nm)

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