segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Flores, flores, e rios de dor e desolação


Não é longo o trajeto a percorrer desde a Rua da Bahia, pela Rua Antônio de Albuquerque, até a Rua Paraíba, passando pelo cruzamento mágico de ruas e avenidas que os mapas da cidade assinalam como “Praça Diogo de Vasconcelos”, para a gente de BH, apenas de Savassi, nome de antiga padaria que existiu por ali. Quatro ou cinco quadras não são muita coisa, mas a expectativa do chope gelado e bem cortado do Café Três Corações ou do Gujoreba, do pescado do Baiana do Acarajé, entre outras possibilidades daquele entorno, dá uma medida da intensidade dessa passagem feliz. No entanto, o passeante deve manter o espírito, senão atento, pelo menos aberto à poesia circunstante. Florada de muitos tons nas quaresmeiras dos passeios; nas floreiras do calçadão isento de tráfego dos quarteirões fechados, inflorescências de um azul tão suave que enternece o próprio céu e o verão. Na branda contemplação, a memória acolhe, fácil, uns delicados florais de Juan Ramon:

Hoy que se abrieron esta tarde // las rosas de tu rerraza (...)

Entre Levindo Lopes e Sergipe, ergue-se elegante e majestoso pau ferro na direção do céu alto, como se disposto a tocar com sua ramagem verde-escuro, lá em cima, o azul dipinto di blu. Deferência da flora, dignar-se uma árvore dessas a enfrentar conosco as vicissitudes de nossa cidade. Antes que alcancemos a praça propriamente dita, outro monumento, o gigantesco cedro “sete barbas” que sombreia o bronze em tamanho natural do escritor Roberto Drummond contemplando, comprazido, buliçosos ires e vires. Poema vegetal, catedral? Por pura implicância, há alguns anos, a árvore teria sido posta abaixo, não a tivessem defendido bravamente. Ela continua lá, exuberante, impávida, colosso(?), para sempre. Valeu a indignação. Irrelevância? Não sei não. Potencializada a uma escala apropriada, a mesma indignação pode, quem sabe, salvar os rios que estão morrendo e mesmo os que já estão mortos, à espera de uma chance para ressuscitar, e as florestas, o cerrado e tudo o mais.

Flávio Friche, meu irmão! Desistir de nossos rios, abandoná-los? Não. Eis livrá-los de toda lama tóxica, o Rio Doce, o São Francisco, o Paraopeba, e Mariana, o Brumado e, quem sabe, ó, esplendor de ouro e prata, o sonho de piracema em águas ligeiras, límpidas, se escapando do Fecho do Funil! A hora é de espanto e desolação. Como nos versos premonitórios de Eliot (*), anteriores aos massacres de Nanquim, a Guernica, ao Gueto de Varsóvia, a Auschwits, à bomba atômica, aos bombardeios de  Hanói e Haiphong, anteriores, também, é claro, ao descaso, indiferença e ganância da mineração devastadora.  Deixar para traz a planície devastada, o travo de absinto, não tem jeito: “A Ponte de Londres está caindo caindo // Poi s`ascose nel foco gli affina // Quando fiam chelidon – Ó andorinha andorinha (...) com fragmentos tais foi que escorei minhas ruinas (...) Shantih shantih”  (nm)

(*) “A Terra Desolada” (The Waste Land) - 1922

14 comentários:

  1. Disse tudo, nano Nil, sobre este pedaço de terra...

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  2. Nilseu,
    A poesia em seu texto ameniza a brutalidade em Brumadinho. Flávio: me esquecera que ele é de lá. Compartilho a sua dor.
    Grande abraço aos dois,
    Zé de Castro

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  3. Obrigado, Nil e José, pela fraternidade. É uma grande dor humana, de todos, sem fronteiras...

    Flávio

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  4. Maravilha de texto, Nilseu!
    Magda

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    1. Obrigado Magda. Você sempre consegue inflar a autoestima do blogueiro.

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  5. Bom da Savassi também é encontrar você para aquela indispensável conversa fiada dos sábados. Bela crônica, abração.

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    1. Obrigado mais uma vez por suas palavras generosas. A gala do botequim consiste nisso de o chope ser à vista, mas a conversa é fiada.

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  6. Caro Nilseu:

    Obrigado pelo texto. Você é um narrador e contista. Precisa partir para uma obra maior.

    Mauro Werkema

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    1. Ô, Mauro,

      Bom, compartilhar esses escritos ociosos com gente "inserida no contexto" como você. Hoje, 12/2, a patota se reúne no Bar do Chumba, em Santa Tereza. A tertúlia promete muito. Obrigado, e um abraço.

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  7. O Chumba é um grande anfitrião, ao lado do Paulinho... Quem tinha cadeira cativa lá era o amigo Luiz Carlos Alves...

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  8. Amigo Nilseu,

    obrigado por descobrir ternura, mesmo numa tragédia que a todos horroriza. É um renovar de esperanças, a confirmar que a vida vale à pena e nem as agressões selvagens conseguem sufocar a esperança. Um abraço, LFPerez

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    1. Ô, Luiz Fernando,

      Sua presença sempre enriquece este O&B. A esperança é de todos nós.

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  9. Nilseu
    Nunca e nunca será fácil escrever sobre o imponderável. Você o fez, com leveza e muita dor.Um trem de dor, bem carregado.

    Paulo

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  10. Ô, Paulo,

    Você se lembra da época em que a gente interessava pela poesia dos românticos brasileiros? Tinha aqueles versos famosos, acho que do Raimundo Correia que falavam da "cólera que espuma, da dor que mora...". Eles me vieram à memória ante a miséria moral que este desastre do Brumado nos lançou na cara.

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