sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Para a celebração do solstício






No dia mesmo do solstício, de inverno, “por supuesto”, a querida amiga Maria Luísa fotografou limões num pátio de Sevilha e, para desejar a passagem feliz de nosso próprio solstício que ocorreu por volta das 12hs e pico do dia 22, mandou a foto primorosa que ora enfeita e alegra este O&B. Esses limões carregam a própria essência do Sol e esparzem sua luz benfazeja e constituem grata e firme certeza de um solstício feliz para todos, desde as paragens geladas da Patagônia até as setentrionais latitudes da Andaluzia e além. (nm)  

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

O "Café" do Fernando Fabbrini


"O
Café do Sargento”, de Fernando Fabbrini, é um mimo para os sentidos dos que gostam ler e, de quebra, não abdicam do sabor e aroma reconfortantes que só a nossa prestigiosa rubiácea pode proporcionar, mesmo para quem tenha, há muitos anos, renunciado ao prazer de um trago de cigarro, depois do trago de café. Nos tempos de escola, na aldeia rodeada de montanhas perfumadas, na estação asada, das olorosas emanações dos cafezais em flor. A professora contava, com sua palavra incontrastável, que foi Martin Afonso, donatário da Capitania de São Vicente, quem trouxe para Brasil, nos começos do Século XVI, as primeiras mudas de café.

Meus mais encarecidos agradecimentos ao capitão português. Iniciativa de muito mérito, mas ele não está na história que o Fabbrini nos conta, nem os domínios distantes de Portugal, lá no Oriente. Ela começa, isto sim, na Guiana Francesa, onde um certo Sargento Palheta, num autêntico “trailer” do 007, foi buscar preciosas sementes de café, não de qualquer café, mas o mais nobre e rico, que as autoridades coloniais protegiam a ferro e fogo, com empenho análogo ao dos chineses em relação ao bicho da seda.

O indigitado sargento enfrentou selva e gafanhotos no ambiente úmido e canicular da Amazônia, atravessou rios e igarapés, mas também dançou os últimos “hits” da época (Século XVIII) em pretenciosos bailes provincianos de uma Caiena que, então, ainda não havia sido transformada em colônia penal pelo governo francês. Lembram-se de “Papillon”, o filme? Steve McQueen, estupendo.

Pois bem. O Sargento Palheta, este era o nome dele, não só dançou com as damas caienenses, como, quando a situação assim o exigiu, foi aos lençóis da mulher do governador da Guiana, tudo para conseguir os grãos de café, sementes, que queria contrabandear para o Brasil. Por sua devoção e empenho nesse mister, mereceu que a dama, na undécima hora, salvasse a sua missão que já parecia um tremendo fracasso. Usando de femininas cautelas, permitiu-lhe embarcar com um alentado pacote das preciosas sementes.

No aeroporto Santos Dumont, no Rio, o Café Palheta serve a bebida nacional com muita qualidade e bastante dignidade. Não sei se é café oriundo das sementes do sargento. Mas evocam seu nome, o que já é bom o suficiente. (nm)



sábado, 28 de agosto de 2021

Matutina, com arrulhos

 


Estrela da Manhã, tão bonita, ao clarão dourado dessas auroras de Minas, cintilações de ouro velho que o inverno espevita! Manacás exibidos perfumam a friagem, branco e violeta, branco e violeta, branco-e-violeta que enfeita a calçada se esticando Rua da Bahia acima, glicínias, as glicínias... brando malva, esplendor de ametista.

O pálido amanhecer, que recorta em sombras de antigos gigantes arvoredo e serrania, acende, devagar, os mais altos casarios; cessa, por um momento, o tráfego intermitente, a madrugada se aquieta. 

Silêncio de endechas

de muitas pombas. 

Rruuú, rruuú, rruurruuú... 

(nm)


Pouco preço, mas muito apreço, a vaquinha da Rua Leopoldina


A vaquinha da Rua Leopoldina continua em seu lugar, presença bonita na calçada, bem ali nos começos, à direita de quem ruma morro acima para os altos do Santo Antônio. Quieta, não tuge nem muge, mas assume humores e estado de espírito da luminosa cidade de BH. Propensa a alegrias e festa, no carnaval sempre aparece enfeitada de confetes e serpentinas e, se calha, oferece até a sugestão de um lança-perfume rodo-metálico de antigos baratos de salão. Em épocas de copa do mundo, sempre se vestiu do verde e amarelo da seleção. Depois vieram sectários que sequestraram essas cores impregnadas de afeto, “auriverde pendão da minha terra, que a brisa do Brasil beija e balança”, “salve lindo pendão da esperança”, mas isso é outra história. Junho? Até balão ela solta, vivam Santo Antônio e São Pedro, viva São João!

O começo? Em 1980, o artista Marcelo Nietsche, de São Paulo, esculpiu-a em concreto na altura do n.o 72 da Leopoldina. Era parte de um projeto do Museu de Arte da Pampulha de promover intervenções na paisagem urbana. Na ocasião, nem ele nem a artista plástica Marina Nazareth, curadora do projeto, poderiam suspeitar que a vaquinha, pequena, nem alcançava dimensão e escala próprias do natural das vacas, haveria de transformar-se em patrimônio afetivo, primeiro da Rua Leopoldina, depois, de toda a cidade.

Os vizinhos souberam repelir tentativas, várias, de “remoção” e, em uma ou duas ocasiões em que ela foi vítima de acidentes de tráfego, trataram de a restaurar. Foi virando, virando, virando, e virou um totem cujo espírito ressuma a maternal disposição de uma potestade benigna, nisso, igual àquela Hator, entidade dos faraós que, há quarenta séculos, esparze eflúvios, os melhores, por todo a vale do Nilo.

Atenta, não descura nem se aliena da vida ou das vicissitudes da cidade, como uma consciência viva e, quem sabe, não guardaria reminiscências de antigos entardeceres para abrandar, na memória e no coração, a dor da maldição das minas, piritas, hematitas, azuritas e tantas pedras de cobiça. Belo Horizonte, Belo Horizonte! Não chorarás, a montanha corroída nem os poentes cariados. Há um tempo sombrio, então o que importa é mostrar valor.

A vaquinha da Rua Leopoldina nunca foi de andar atrás de berrante. Ainda se fosse um aboio afinado, como na canção de Luiz Gonzaga, a pequena boiada primando pela boniteza! São dez cabeças, é muito pouco, é quase nada, mas não tem outras mais bonitas no lugar. (*)

Para hoje, em letras claras,  no traseiro, a explicitação que remete a José do Egito: o tempo é de vacas magras; no dorso, a vaquinha da Rua Leopoldina traz uma consigna apropriada ao  programa de qualquer governo bom: VACINAS JÁ!

(nm)

(*) Só por lembrar: Salomé, vaca de antiga canção de Bob Nelson, sobrevive na rima estupenda, achado lírico de arrepiar. Barnabé, o boi, anda se babando, muito satisfeito por ter feito uma boa escolha. Sua linda Salomé não dá leite engarrafado, com tampinhas e com rolhas? Além disso, meu chapa, leite açucarado, misturado com café. Aí, vem aquele falsete alpi-faroestino:

Olei olei lei lei i titi!


quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Homenagem a Vieira (*)

Clovis Salgado Gontijo

 

Nossa Senhora, Mãe Celeste,

há muitos séculos,

os peregrinos desta Terra vos invocam.

Devotos, sempre vos pedem:

uma direção,

um caminho suave,

um abrigo seguro,

o equilíbrio para não tropeçar,

a saúde para não esmorecer.

 

Nossa Senhora da Estrada

e dos amanheceres,

também sou peregrino

e recorro à vossa proteção.

Hoje, a jornada será longa.

A Lua nem sequer se recolheu

do céu esbranquiçado de Luminosa.

 

Nossa Senhora das Candeias,

despertai novamente o Sol

para iluminar de vez o mundo

e inundar o céu, por todo este dia,

com o azul intenso do vosso manto.

 

Nossa Senhora das Neves,

penso em vós neste vale frio

onde só há geadas.

E vos peço para derreter

as ações do tempo que me petrificam.

Mas, antes, aquecei minhas mãos geladas,

ó Senhora da Luz,

padroeira da cidade do meu pai.

 

Quanto a mim,

vim das bandas da Boa Viagem

e, por isso, me fizestes peregrino.

Ainda não sei para onde vou.

Por ora, meu destino não será vos encontrar,

Nossa Senhora Aparecida.

Subo as serras em busca da liberdade rarefeita nas planícies

ou, quem sabe, para me manter, como a vida,

simplesmente em movimento.

 

Já com o corpo aquecido,

dirijo a vós outra prece,

minha fiel companheira,

Senhora da Soledade.

Por favor, deixai-me bem atento

aos encantos que brotam no trajeto.

A beleza sabe amaciar as botinas.

Qual graça de imediato recebida,

observo as criaturas que me cercam.

Conheceriam e invocariam, também elas,

algum dos vossos títulos gloriosos?

 

Passeia, à minha esquerda,

um curso de águas sonoras.


Não precisa de luz, nem de guia.

Avança, de olhos fechados,

sem temer o choque das pedras,

sem temer se perder,

tornar-se

ou deixar de ser

rio.

 

Se o córrego flui assim, tão seguro,

é por vossa interseção, Maria da Fé.

Volta e meia, vejo um pássaro

pousado no arame de uma cerca.

Não depende de estradas para seus percursos,

mas roga por bons ventos

e, depois de um voo penoso,

espera por Vós ser atendido,

Nossa Senhora do Bom Repouso.

 

Nos pontos mais altos,

as araucárias preenchem a paisagem.

Fora suas raízes profundas,

nada mais as liga à terra dos homens.

Não se preocupam com o bom sucesso,

nem com a boa morte.

Desafiando a gravidade,

voltam aos céus os longos ramos,

em adoração constante,

em total e mudo abandono,

à imagem da Senhora do Silêncio.

 

A trilha contorna a pedra sobranceira

que atrai e intimida os viajantes.

Não carece de mais amparo

e, para ela, tanto faz o mau quanto o bom tempo.

Se, no seu topo, erigem um cruzeiro,

não se queixa,

mas implora à Senhora da Piedade –

ou seria à Senhora da Penha? –

que a livre das incisões humanas.

Nossa Senhora dos Anjos,

amada por Francisco,

talvez todas as criaturas Vos invoquem.

Mesmo aquelas sem pés e sem caminhos.

Quanto a mim,

sou peregrino

e, como desconheço esta estrada e meu destino,

não dispenso nenhum dos Vossos nomes.

 

Piranguçu, julho de 2021

 

(*)  O Clóvis andou peregrino por velhas igrejas do Sul de Minas e, em tantas encontrou devoção tão arraigada na Virgem Maria que, ao compor homenagem ao padre Antônio Vieira, desde sempre outro rendido devoto da mãe de Jesus, chegou sem muito esforço  à piedosa oração. Os tempos são difíceis por aqui e a gente tem mesmo de recorrer a toda ajuda possível. Ave Maria, esperança nossa. Salve! (nm)


domingo, 4 de julho de 2021

Uma balada e uma baladinha (só pra distrair a quarentena)

Recolhimento (*)..

A quarentena da lepra, dos homens, das roupas e da casa é de sete dias, a critério do levita (Levítico). Para encontrar-se consigo mesmo, tanto para o Filho de Deus quanto para os filhos dos homens, são necessários quarenta dias contados, na solidão do deserto de cada um. Para, daí, abrir passo até a Terra da Promissão, quarenta anos podem ser suficientes.

(*) Heptaédricas – 2017

 

Há séculos, a Lepra e a Peste, de vez em quando, impõem quarentenas como, agora, o vírus insidioso, ameaçador, letal. Não adianta reclamar. É chato sujeitar-se ao recolhimento forçado, renunciar ao convívio e à conversa fiada dos botequins da vida, sobretudo quando tarda, e tarda muito, a vacina que trará de volta nossa liberdade. Por enquanto, vale o refrão de Gilbert de Carvalho: “Quando no terreiro, // faz noite de luar // e vem a saudade // pra atormentar // eu me vingo dela // tocando viola // de papo pro ar”. Revolver uma pilha de discos de vinil, escolher um e ligar a velha vitrola também vale, pra quem nem sabe tocar viola.

Quando vem a voz inconfundível de Edith Piaf, quase sem o discreto chiado que, indefectível, acompanha esse processo de reprodução sonora, porque o disco, tocado pouquíssimas vezes, está “novinho”, manifesta-se a circularidade do Tempo. Tudo poderia virar “presente” nas notas de La vie en rose ou Hymne a l`amour, mas La goualante de pauvre Jean, sem maiores prosopopeias, tem o condão de restaurar magias e alegrias da infância, curiosamente atadas, não à balada de Marquerite Monnot e René Rouzaud, mas à versão que andou em voga no Brasil, na década de 50. Ela nem foi propriamente leal ao original, a começar pelo título, que deveria ter sido A balada do pobre João. Veio “Os pobres de Paris”, mas a gente gostou assim mesmo.


Voltemos à balada, ou a La Goualante du Pauvre Jean (*):

Esgourdez rien qu'un instant
La goualante du pauvre Jean
Que les femmes n'aimaient pas
Mais n'oubliez pas
Dans la vie y a qu`une morale
Qu'on soit riche ou sans un sou
Sans amour on n'est rien du tout

Il vivait au jour le jour
Dans la soie et le velours
Il pionçait dans de beaux draps
Mais n'oubliez pas
Dans la vie on est peau de balle
Quand notre coeur est au clou
Sans amour on n`est rien du tout

(...)

Et voilà mes braves gens
La goualante du pauvre Jean
Qui vous dit en vous quittant
Aimez-vous....


(*) A balada do pobre João

Escutem por um instante
A balada do pobre João
Que as mulheres não amam mais
Mas esquecer, nãos esquecem.
Existe apenas uma moral na vida,
Ricos ou sem um tostão
Sem amor não somos nada

Ele vivia o dia-a-dia
Entre sedas e veludos,
lençóis, os mais finos.
Mas não esqueça,
Na vida nada valemos
Quando nosso coração está em farrapos.
Sem amor não somos nada

(...)

Eis aí, brava gente
A balada do pobre João
Que lhes diz ao vos deixar,
O negócio é amar...


Baladinha do Hospício
 
Nicolau czar, duques, condes, generais
Clero demais, muita ortodoxia,
Revolução? Não, só agitação.
1901, notícia pela ferrovia, de pasmar
O Leão (Davidovich): outro Leão,
Nikolaieivitch Tolstói, excomungado,
Por tergiversar, diziam,
Sobre a Imaculada Conceição,
Mas, alguém acha um prisma bom:
 
“Não dá pra perder para um hospício desses”.
 
Demorou, mas acabou.
Acabou? Não, nunca acaba.
2021, pandemia, novas cepas,
novas idiossincrasias.
Mandam tomar cloroquina,
Ou estricnina, formicida Tatu,
BHC com creolina,
Bom pra chato e carrapato,
Lombriga e ameba, talvez.
Pode também rezar, o freguês,
Pra Santa Felizbina, para a imperatriz
Catarina, pra princesa Leopoldina...
 
“Não dá pra perder para um hospício desses”.
 
E o faceiro do reclame?
Ele quase morreu de bronquite,
Salvou-o o rum creosotado.
E passa, passa, Talco Ross,
quero ver passar. Vacina?
Nem pensar.  O negócio
É deixar a abobra alastrar:
Uma vez morto o rebanho
Não haverá mais pandemia,
Nem ninguém pra se lembrar
Que, um dia, existiu uma “Tabacaria”.

 
“Não dá pra perder para um hospício desses”.

(NM)


 


sábado, 5 de junho de 2021

Tempo de cantar

Quem pôde ouvir a voz de Paulo Autran declamando “Da Profissão de Poeta”, de Geir Campos, em vivenciou, naquele idos de 1965, quando o regime militar ainda não tinha alcançado a plenitude de suas pretensões, um happening inesquecível. O contexto? “Liberdade Liberdade”, de Flávio Rangel e Millor Fernandes. Foi como se o próprio Zeus Tonante quisesse expandir até as esferas altas uma exaltação tão tremenda que tocasse o coração das Musas, mas era puro louvor, louvor apaixonado, à liberdade.

Foi um pouco assim, lembram-se?

(...) Fui chamado a cantar e para tanto há um mar de som no búzio do meu canto.      (...) Se há mais quem cante, cantaremos juntos (**)                                                                                                            

(...) Não canto onde não seja a boca livre. // Onde não haja ouvidos limpos e almas // afeitas a escutar sem preconceito. // Para enganar o tempo – ou distrair criaturas já de si tal mal atentas, // não canto... Canto apenas quando dança. // nos olhos dos que me ouvem, a esperança.

(**) Numa canção que andou em voga em seu momento e em seu lugar, o violeiro Carreirinho cantou que “A moda de um triste assunto // não adianta cantar junto” (...)

Pra que serve o bom e velho Livro da Cabala, senão pra contextualizar incongruências? O que está acima, está embaixo, o que está dentro está fora e por aí vai. Um canta, todos cantam, E pluribus unum. E a Dolores Duran, hem? Pura exaltação do Amor que, como nenhuma outra entidade, potencializa a Liberdade, e vice-versa. “Hoje, eu quero a rosa mais linda que houver // E a primeira estrela que vier // para enfeitar a noite do meu bem”.

Porém, isso de cantar, às vezes, muitas vezes, enfastia, e o sujeito precisa sucumbir ao chamado da Poesia para não perder a perspectiva brechtiana: Nos tempos sombrios, // Se cantará também? // Também se cantará // Sobre os tempos sombrios. (nm)

 Clóvis Salgado Gontijo (*) sucumbe à Poesia, às vezes cáustica, mas asi és la vida Federico:

 

Não dou o braço a ninguém.

Ralentar meu passo para apoiar o velho alquebrado?

Jamais.

Torço o punho e acelero.

Acompanhe-me quem puder.

No meu exército só entram machos.

Aqui os fracos não têm vez.

Tomem suas motocicletas e sigam-me.

Estou farto de frescuras.

Não cubram o rosto, nem sequer com capacetes.

Deem às máscaras outra serventia:

Tampem com elas suas placas,

pois nem todos os meus súditos desligaram

os ferrugentos radares deste império.

Não acreditem, ordeno, que haja algo a temer.

Se ouvirem tossem, gemidos, prantos, sirenes,

aumentem o ronco do motor.

Sejam invencíveis como eu,

como minha prole que reina na garupa,

enquanto ainda me refestelo no trono.

No fundo, sei que meu tempo há de passar.

Assim, que seja profundo o rastro desta devastação!

Deixem-me voar,

deixem-me gozar,

senão da dor alheia,

das divisões que logrei semear.

Eis a minha única conquista.

Acelerem comigo, vestidos de verde e amarelo,

confesso que tenho medo de fraquejar.

A velocidade sobre duas rodas

mascara meu andar trôpego em outros caminhos.

Como todos os homens,

também preciso de um braço,

mas o meu, não o darei a torcer.

Aceleremos juntos,

Sem abraços, sem toques.

Preciso prevenir a solidariedade.

Na comitiva da virulência

É cada um por si

E Deus por todos.

Sim, Deus me livre de omitir,

ao fim de um discurso,

o seu nome acima de todos,

no qual custaria a acreditar

se hoje eu não estivesse acima de tantos.

(*)  Clóvis é professor assistente da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), com dupla formação em Música e Filosofia: cursou bacharelado em Música pela Faculdade Santa Marcelina, SP, e em Filosofia pela FAJE; mestrado em Música pela TCU, EUA e doutorado em Estética pela Universidade do Chile. Entre outras obras, é autor de “Ressonâncias Noturnas”


domingo, 30 de maio de 2021

O entendimento da Natureza.

 (José Daniel Machado)*

Todos os entendimentos que os homens têm da Natureza podem ser agrupados em dois campos distintos e inconciliáveis: 

    No campo A encontram-se aqueles que acreditam na existência de um (ou vários) sujeitos da criação transcendental que, do lado de fora, num dado momento, criou livremente a Natureza e todos os seres que estão nela, visando uma finalidade. Esse criador possui poderes absolutos e, quase sempre, tem forma e sentimentos humanos - é antropomórfico. Senhor dos destinos, ele pode modificar, se quiser, aquilo que ele mesmo criou - milagres. Nesta criação o homem é o centro da Natureza, dotado de livre-arbítrio para uns e/ou é predeterminado pelo criador para outros. Criador e criatura têm relacionamento transcendente. 

    No campo B encontram-se aqueles que entendem que a Natureza é causa de si e causa imanente de todos os seres que estão nela. Neste caso, não existe sujeito da criação. A Natureza se  autoproduz numa ordem necessária segundo as suas próprias leis eternas, gerando, concomitantemente, os seres finitos e singulares que dela participam expressivamente. Estes seres - os homens, por exemplo - têm com a Natureza um relacionamento imanente. 

    Os adeptos do campo A são amplamente majoritários, dele fazem parte filósofos, profetas, teólogos, religiosos e quase a totalidade do vulgo. O campo B é minoritário, sendo constituído de filósofos e cientistas naturalistas, além de poucos elementos do vulgo. Dentro de cada lado, principalmente no campo A, existem inúmeros subgrupos proselitistas que, frenquentemente, entram em conflito sangrento por intolerância, em defesa dos seus dogmas e/ou pelo poder. 

    No campo A a verdade é revelada pelas Sagradas Escrituras e no campo B é buscada pela luz natural - razão. Para os adeptos do campo A a Natureza tem início, fim e, por óbvio, possui um antes, depois e lado de fora da existência. Para os situados no campo B, infinitude e eternidade são propriedades da Natureza; portanto, não há antes, depois e lado de fora. Para o campo A, o homem está no tempo e entra na eternidade ao morrer. Para o campo B, o homem está na eternidade e sai quando morre. Bem e mal são absolutos, substanciais e não se misturam, para os adeptos do campo A. Por outro lado, os do campo B entendem que são relativos; o que é bem para uns pode ser mal para outros. O campo A depende de fé ativa; o campo B depende de entendimento progressivo. 

    Muitos se reconhecem incapazes de distinguir os dois campos e se declaram céticos; por isto suspendem o juízo (decisão). Acham impossível entender plenamente a essência última das coisas. Para grande parte, os dois campos lhes parecem imbricados e, inseguros, colocam um pé em cada canoa. Poucos conseguem fincar os dois pés no mesmo campo. 

    Os adeptos do campo A se sustentam na esperança de encontrar felicidade após a morte junto ao criador, depois de uma vida ascética, piedosa, virtuosa e repleta de orações. Os adeptos do campo B buscam a felicidade no entendimento progressivo da Natureza, da natureza das coisas, principalmente, da humanidade, e da natureza de si mesmo.

Qual o seu campo? 

* José Daniel Machado é economista de ofício, mas é desses cuja compreensão dos fenômenos da Economia e da vida vai muito além do que podem informar as ordenadas e abcissas do diagrama cartesiano e se ele esbarra, verbi gratia,  com a classificação períódica dos  elementos, não se deixar encabular ante tantas valências e possibilidades em meio às desconcertantes disposições de Mendelejev. Agora ele resolveu passear por veredas dialéticas (de Aristóteles), talvez um pouco por aquelas celestiais campinas de Santo Agostinho. Ora, bolsas! Quem conhece o Daniel sabe que ele pode ir a qualquer lugar e voltar com segurança. (nm)

sexta-feira, 28 de maio de 2021

O salto

O Lélio Fabiano dos Santos resolveu contar histórias. Uma que caiu na rede de O&B o blogueiro ocioso resolveu postar.

 - Posso?

 - Claro que pode, anuiu de pronto o velho amigo.

 Então, o blog, alegremente, compartilha “O salto”, pequeno lavor de ourivesaria do Lélio, que anda meio sumido na bruma ingrata desses mares pandêicos, mas vocês podem ver pela foto que ele  mantem-se firme no curso, sobrepujando as vagas com a galhardia e altivez de sempre, quarentenado e vacinado, longe, longe, a Peste e outras procelas. (nm) 


O sol de fim de outono e do começo do inverno no hemisfério sul deveria ser festejado como nas antigas civilizações, com datas para celebrar e reverenciar os astros da galáxia que se enleavam à multiplicidade de seus deuses. Nosso planeta era mais cósmico e parecia relacionar-se melhor com aquela penca de estrelas que nos são apresentadas desde os milhares de séculos até onde os estudos e a imaginação alcançam e que nos iluminam há tantas e quânticas eras.

                      A linda manhã outonal animou Carlos ao passeio naquela tarde, como vinha se prometendo fazia tempo. Ziguezagueou por algumas ruas do bairro em direção da comprida avenida que integra a zona sul da cidade ao centro, que hospedava os primeiros prédios de escritórios e de variado comércio em andares térreos, estendendo-se por galerias, esquinas e casas resistentes ao desordenado crescimento urbano.

                      Tendo percorrido uns dez quarteirões da artéria e já no coração da cidade, deteve-se ante a vitrine da principal loja de departamentos que abrigava marcas nacionais e estrangeiras de moda masculina e feminina no prédio de nove andares. O centro comercial fazia esquina com a igreja ao meio do quarteirão ajardinado amenizando a paisagem e atraindo transeuntes em busca de paz e perdões.

                     Mal começara a passar as vistas pelas tabuletas dos preços dos artigos masculinos afixadas nas peças, escutou a exclamação feminina de seu nome ali bem próxima. Virando-se defrontou a dona da voz. Os olhos nos olhos de um e de outro foram só um pouco mais rápidos do que suas falas:

                      - Caco?

                      - Isa?

                       As reapresentações cederam logo às relembranças de tempos e amores idos, estes possivelmente nem tanto idos quanto aqueles. Lugares morados e ocupações, casamentos e separações, descendências e emoções, alegrias e decepções. Tudo o que na calçada não dava mais para seguir com as reciprocidades levou-os para dentro, até ao elevador e para o terraço da loja de magazines, onde o restaurante panorâmico serviu de cenário para o reencontro dos amantes de antanho.

           Isabel e Carlos juraram nunca mais se separarem nem deixar a cidade que um dia desunira as alianças prometidas, ali na igreja ajardinada ao lado. Pactuaram juntar-se e juntar tudo. Fechadas as contas da mesa e do passado, dirigiram-se para a sacada do prédio. O sol se preparava para o cair da tarde e na cidade acendiam-se as primeiras luzes.

           Carlos e Isabel aguardaram o anoitecer e começaram a contar estrelas, admirando-as. Deram-se um beijo, as mãos e saltaram na direção delas.

           Como eram lindas. Vênus, Marte, Saturno e Júpiter, Zeus de todos os céus.