As sombras são tão espessas que realçam até a passagem coruscante de um pirilampo ínfimo. Mais que uma visão noturna poderosa, ela tem o instinto e a memória de sua estirpe asinina. E, simplesmente, sabe onde pisa no trajeto tão familiar: estão voltando para casa. Às vezes, o pisca-piscar de uma estrela rebate tenuemente na piçarra de um barranco, o que, nem ao animal nem ao caboclo passa despercebido. Não podem perder qualquer lampejo aqui embaixo, por mínimo que seja, nessas ocasiões em que a Lua Nova acende os luzeiros no céu, mas apaga o chão.
Erguendo os olhos para acompanhar a fumaça invisível que subia, Inácio defronta-se com a constelação Erguendo os olhos para acompanhar a fumaça invisível que subia, Inácio defronta-se com a constelação do Touro, que mal reconheceu na noite estrelada, fixando-se nas Plêiades. Maia, Electra, Taígeta, Asteropo, Mérope, Alcione e Celeno cobrem com diáfanos véus de fina névoa a fingida pudicícia. Puxou outra baforada funda do Beverly, espevitando a brasa, que virou um pequeno farol no meio de tanta escuridão. Com o ar frio da noite na serra a arder-lhe nas narinas, confidenciou à mulinha: – Dulcineia, sabe que eu tô pensando na Isaura?
– E pensando o que? – indagou a mulinha, mostrando interesse
na conversa.
– Não paro de pensar como ela anda bonita e como é bom ficar
perto dela. Respondeu com a boa disposição com que, às vezes, conversava
durante horas com Dulcineia, em longas jornadas solitárias deles dois.
– Bom, mas isso de caboclo gostar de cabocla é mais antigo
do que a Serra da Canastra, ponderou a mulinha, quase entediada, mas, em
seguida, preocupou-se e acrescentou:
– Está bem, mas é melhor não desassossegar, não perder o
controle. Trate de guardar o siso, homem.
– Mas a lembrança da Isaura tá me sufocando, apertando,
apertando. Bem aqui, ó...
E Inácio pressionou contra o peito o punho fechado da mão
direita, segurando entre os dedos o toco de Berverly ainda queimando. Então os
olhos do caboclo relutando ante a ideia de que pudesse estar apaixonado
ergueram-se de novo na direção do céu alto, perscrutando, buscando, até achar
de novo as Plêiades. Num arroubo de lirismo do qual nem se supunha capaz, disse
à mulinha:
– Dulcineia, se eu pudesse, ia lá em cima e trazia o Sete
Estrelo pra Isaura pendurar na corrente do pescoço. Tá vendo ele lá? Não é uma
beleza?
Dulcineia pôs-se pragmática e ponderou: – E se você desse
uma passadinha na oficina do Melquíades. Encomenda, que ele faz um sete-estrelo
de pedrinhas...
– Mas se o Melquíades nem é ourives, é relojoeiro, e aí já
vem você... só porque ele tem aquelas ferramentinhas miúdas, uma lente
esquisita, de um olho só! – quis ponderar.
Mas a prosaica sugestão da mulinha amuara o caboclo,
reduzindo a nada sua expansão lírica. Pra lá de macambúzio Inácio resmungou:
– Pra pagar uma encomenda dessas eu precisava vender os
arreios, a badana, as esporas, a guaiaca, o chapéu, a cabeçada... E vender
você, Dulcineia!
Era a parte mais repugnante da perspectiva. Irritado e
decidido, encerrou o assunto:
– Que sete-estrelo que nada!
O céu esplendente pesou sobre os dois enquanto seguiam serra
acima, sem mais palavras. (nm)
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Continua na próxima quarta-feira
I love it
ResponderExcluirSucinto, sem dúvida. Mas, generoso. O&B agradece, mesmo sem saber de quem é o comentário.
ExcluirCaro Nilseu,
ResponderExcluirGostei muito dessa conversa do roceiro Inácio - pitando o Beverly sem filtro - e sua rosilha Dulcineia, dela recebendo o conselho para guardar siso em face de suas fantasias amorosas. Tem a ver com os quixotescos devaneios do cavaleiro espanhol em torno de sua amada, que dele nem sabia.
Meu abraço fraterno.
Ariosto
Ô, Ariosto. Obrigado por seu comentário preciso e gentil. Sua presença é sempre bem vinda neste O&B.
ExcluirA mulinha usou o Sete Estrelo para amuar seu dono! Bom de ler Grande Nil!
ResponderExcluirNão está assinado, mas parece a letra do Panther. De qualquer modo, obrigado.
ExcluirGrande Nil, é Alair! Não consigo pôr meu nome e não gosto de Anônimo. Me lembro do Jonny Bezerra: Eu sou alcoólatra e ainda anônimo!
ResponderExcluirÔ, Alair: achei que o comentário anônimo precedente era do Panther. Desculpe amigo, mas "tudo vale a pena se a alma não é pequena".
ExcluirLendo em uma das inúmeras praças de Lisboa...
ResponderExcluirÔ, Panther:
ExcluirPensei que fosse seu o comentário anônimo do Alair, mas não tem importância. Fevereiro já está vem avançado e, logo, logo, vem a primeira segunda-feira de março e os alegres rapazes da velha imprensa estaremos em mais um momentoso encontro no Bar do João. Até lá. Enquanto isso, O&B folga em saber que algum de seus textos ociosos são desfrutados em velhas praças da cidade de Ulisses. Grande abraço.
Caro Nilseu,
ResponderExcluirgostei da conversa do matuto com o burrinho. Lembrou-me o fidalgo espanhol e Sancho Pança, talvez pela nostalgia das velhas leituras de Cervantes.
Abraço, José de Castro
Ô, Zé:
ExcluirObrigado pela acolhida generosa às histórias de O&B. Grande abraço
Caro Nilseu.
ResponderExcluirBom dia e muito obrigado por mandar mais uma pérola do seu Heptaédricas. A magia do número sete, desta vez, veio na singela e lírica história de amor do caboclo Inácio pela Isaura. Sob as sete estrelas das Plêiades, desimpedidas pela lua nova, o caboclo do Sudoeste de Minas confidenciou à mulinha Dulcineia a sua saudade da Isaura. Realista como Sancho Pança, Dulcineia trouxe Inácio para a Terra: ele estava sonhando em presentear Isaura com as Plêiades. E o sonho se desvaneceu na fumaça do Berverly. Parabéns, Nilseu Martins, e obrigado por mais este presente. Sonhando como Inácio, aguardo o próximo.
Grande abraço,
Daniel.
Ô, Daniel,
ExcluirMais uma vez, obrigado por sua presença amiga aqui em O&B. Sua falta de isenção me favorece tremendamente.
O Ociocidades & Bagatelas é um espaço mágico, onde os leitores exercem o direito de deleite na leitura. Leio e releio cada frase, com medo de que acabe depressa demais.
ResponderExcluirObrigado, querida amiga. Você aumenta minha responsabilidade a cada postagem, mas alegra meu coração.
ExcluirOi Nilseu,
ResponderExcluirDentro de um voo da Azul, fuçando aqui e acolá, fui bater no seu Blog com a conversa do caboclo com a mulinha. Show! Parabéns pelo trabalho, pela iniciativa, pela produção.
Ayres
Maravilha, Ayres! Grande visita, a sua, O&B agradece, Grande abraço
ExcluirO Sete Estrelo tão bem fica lá em cima no firmamento, se cair na mão do Melquíades vai virar um tormento. Dulcinéa no seu passo lento tempo deu a Inácio para tomar tento.
ResponderExcluirQuel bela peça, Nilseu, alegrou minha manhã nublada e chuvosa, mas cheia de passarinhos. Até um gaturamo desavisado pousou no quintal para cantar e me atrapalhar este comentário, se é que canto de passarinho atrapalha alguma coisa.
Um grande abraço.
Ô, Daniel: Bom ter notícias de passarinho pela manhã, e ter notícias suas, o que é mais ou menos a mesmo coisa. Em versos é melhor, claro. Obrigado, amigo, não some não.
ExcluirQuerido Nilseu,
ResponderExcluirAdorei o “Sete-Estrelo”. Aguardo o próximo.
Grande abraço,
Sônia
Oi Sônia:
ExcluirObrigado pela acolhida generosa às extravagâncias de O&B. Nesta quarta fiz duas postagens breves, meras notas de leitura explorando registros relativos ao número sete. Você é sempre bem vinda ao blog.