(VIII) Chatos
Mas, na escola que uma pequena cidade pode ser, nem tudo era
álgebra ou catecismo, embora as conexões, às vezes flagrantes, sutis às vezes,
entre as disciplinas do currículo: – O que que é isso aqui? Ante a indagação
meio apalermada de um cafumango segurando algo entre as pontas do polegar e do
indicador, fechados como se fossem pinças, respondeu com voz que era puro enfado uma mulher magricela, que
talvez tivesse sido bonita numa juventude transcorrida havia lá uns bons vinte
anos, sem a menor disposição de parecer simpática: – É bicho-de-sete-pernas,
rapaz. Você não está vendo?
Uma gargalhada geral fez eco à debochada provocação,
expandindo-se pelo bordel. Era o terceiro ou quarto dia de uma chuva fina e
intermitente, e o mulherio dividia o tédio com garimpeiros e gente da roça
impedidos de trabalhar por causa do aguaceiro, além de um ou outro estudante.
Inexperto, o basbaque ficou olhando com cara de quem não estivesse entendendo
nada, completamente encabulado. Uma moça morena compreendeu a situação e, por
alguma classe de instinto maternal, dispôs-se a aliviar, protegê-lo daquela
gente sabidamente sem caridade. Com paciência e simpatia, foi explicando: –
Bicho-de-sete-pernas é muquirana (**), chato, piolho-da-virilha. Uma praga, querido!
Este lugar está assim disso. O mundo está assim disso!
Um gesto com os dedos em feixe, as extremidades unidas,
apontando para o céu, enfatizava a apregoada infestação: – E de tudo quanto é tipo – reiterou com uma
expressão que era puro aborrecimento. Meio sem jeito, o rapaz limitou-se a
sorrir agradecido, esforçando-se para não parecer otário demais. Percebera a
ambigüidade que brilhava na expressão jovial dela, mas continuava sem entender
a nova onda de gargalhadas que suas palavras provocaram.
A posterior aquisição de alguma noção mais precisa da
natureza dos phthirius pubis, insetos
da ordem anoplura, família dos
pediculídeos, não obscureceu a agudeza nem a abrangência daquela referência
primordial: a ideia de uma infestação universal de chatos de todas as classes
manteve sua inteireza conceitual na memória e na consciência de quem
presenciou, atento, àquela breve lição de entomologia. Sobrariam sem solução
questões relevantes do ponto de vista morfológico. Mas, sem laboratórios, lupas
nem critérios descritivos adequados, a suposição de que as pernas de um
anopluro quase microscópico pudessem ser sete ainda teria boas razões de ser.
“Sete” é adjetivo, como costumam ser os numerais, mas terá, também, algo de
adverbial, com suas inequívocas conotações de “muitos”, além de propriedades
superlativas que podem variar e, assim, conforme o contexto, significar
qualquer número de difícil precisão. Além do mais, quem iria dar-se o trabalho
de ficar contando pernas de muquirana? Melhor, mesmo, era admitir que fossem
sete, conforme asseverado com autoridade pela moça do puteiro.
O dicionário Aurélio consigna o caráter cosmopolita do
chato, que vive normalmente na região pubiana, mas pode instalar-se com
conforto em sobrancelhas e axilas. Não há registro da voz “cri-cri” senão como
o estrídulo exasperante dos grilos, mas não tem importância. Todo mundo sabe
que, no bestiário popular, “cri-cri” corresponde a um mitológico sub phthirius,
provavelmente também de sete pernas, que prosperaria nos pentelhos dos chatos. (nm)
(*) Mesmo numa leitura linear, as Revelações expõem a insignificância do indivíduo confrontado com o Absoluto, seja o Tempo incompreensível ou os limites do universo, impossíveis de intuir. O resto é incandescente escatologia, cujo conteúdo apavorante uma assustada professora (1.1) de catecismo ia exorcizando com setenta e sete persignações, distribuídas conforme ia aflorando no texto cada sugestão do Maligno: Só se ela queria, mesmo, era apavorar com a lembrança aterradora das chamas dos infernos e com a perspectiva do fim do mundo, vingando-se daqueles fedelhos aborrecidos que lhe azucrinavam a vida de professora de matemática.
(**) Há que veja aí uma incongruência entomológica, partindo da ideia que prevalece em algumas regiões da nossa pátria salve, salve, que "muquirana" seria pernilongo, mosquito. Mas isso é irrelevante, posto que, no aborrecido e molesto, patenteia-se uma identidade irretorquível, ainda que meramente ideológica: muquirana é chato, sim senhor, e vice-versa.
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Continua na próxima quarta-feira - 6/3
Bom dia Nilseu. O chato do chato não era o ziriguidum ?
ResponderExcluirBom dia, meu anônimo amigo. Esses temas entomológicos sempre admitem alguma controvérsia. Confesso que nunca ouvi falar em "ziriguidum", a não ser como uma vinheta famosa, em seu tempo, do radialista Sargentelli.
ExcluirAlô Nilseu,
ResponderExcluirObrigado pela lição de Entomologia. Pena que aos 14 anos eu não conhecia o bicho-de-sete-pernas, apenas o Chato, pai do Cri-cri.
Mas, sua lição foi a tempo de tornar minha vida mais engraçada e menos chata. Detefon nele.
Abração,
Daniel.
É isso, Daniel. Mais uma vez, obrigado pela visita a O&B.
ResponderExcluirCaro Nilseu,
ResponderExcluirÓtimo o seu texto. Muito obrigado por enviar, e pelo abraço a respeito da minha eleição para a AML. Continuemos ligados. Ótimo domingo.
Do seu leitor e amigo,
Carlos Herculano.
Ô, caríssimo Herculano:
ExcluirSua visita e seu comentário generoso ilustram e alegram este O&B. Obrigado
Nilseu amigo, só com aquela simpática latinha amarela de Neocid, que, há quem diga, ainda existe à venda...
ResponderExcluirPois é, Lélio. Já dizia, então, o reclame que a gente podia ouvir no rádio: "Neocid é de matar".
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