quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Lição de entomologia

 

(VIII) Chatos

“Gente, isso não é bicho-de-sete-cabeças não!” Havia muita sinceridade, muito afã de estimular, de criar um clima favorável à compreensão das relações entre espaços, quantidades, números. Mas, a professora de matemática banalizava a expressão, obviamente inspirada do Livro das Revelações (*), através da reiteração quase obstinada: “Não há mistério, gente. É só prestar atenção, raciocinar. Álgebra não é bicho-de-sete-cabeças”. Mais difícil que aqueles encrencados exercícios, era entender o critério da mulher que, na aula de catecismo, persignava-se a cada vez que mencionava o Anticristo, o número 666 ou qualquer daqueles dragões de sete cabeças que vomitam fogo nos textos do Apocalipse: – Cruz Credo, Ave Maria! Creio em Deus Pai!  etc...

Mas, na escola que uma pequena cidade pode ser, nem tudo era álgebra ou catecismo, embora as conexões, às vezes flagrantes, sutis às vezes, entre as disciplinas do currículo: – O que que é isso aqui? Ante a indagação meio apalermada de um cafumango segurando algo entre as pontas do polegar e do indicador, fechados como se fossem pinças, respondeu com voz  que era puro enfado uma mulher magricela, que talvez tivesse sido bonita numa juventude transcorrida havia lá uns bons vinte anos, sem a menor disposição de parecer simpática: – É bicho-de-sete-pernas, rapaz. Você não está vendo?

Uma gargalhada geral fez eco à debochada provocação, expandindo-se pelo bordel. Era o terceiro ou quarto dia de uma chuva fina e intermitente, e o mulherio dividia o tédio com garimpeiros e gente da roça impedidos de trabalhar por causa do aguaceiro, além de um ou outro estudante. Inexperto, o basbaque ficou olhando com cara de quem não estivesse entendendo nada, completamente encabulado. Uma moça morena compreendeu a situação e, por alguma classe de instinto maternal, dispôs-se a aliviar, protegê-lo daquela gente sabidamente sem caridade. Com paciência e simpatia, foi explicando: – Bicho-de-sete-pernas é muquirana (**), chato, piolho-da-virilha. Uma praga, querido! Este lugar está assim disso. O mundo está assim disso! 

Um gesto com os dedos em feixe, as extremidades unidas, apontando para o céu, enfatizava a apregoada infestação:  – E de tudo quanto é tipo – reiterou com uma expressão que era puro aborrecimento. Meio sem jeito, o rapaz limitou-se a sorrir agradecido, esforçando-se para não parecer otário demais. Percebera a ambigüidade que brilhava na expressão jovial dela, mas continuava sem entender a nova onda de gargalhadas que suas palavras provocaram.

A posterior aquisição de alguma noção mais precisa da natureza dos phthirius pubis, insetos da ordem anoplura, família dos pediculídeos, não obscureceu a agudeza nem a abrangência daquela referência primordial: a ideia de uma infestação universal de chatos de todas as classes manteve sua inteireza conceitual na memória e na consciência de quem presenciou, atento, àquela breve lição de entomologia. Sobrariam sem solução questões relevantes do ponto de vista morfológico. Mas, sem laboratórios, lupas nem critérios descritivos adequados, a suposição de que as pernas de um anopluro quase microscópico pudessem ser sete ainda teria boas razões de ser. “Sete” é adjetivo, como costumam ser os numerais, mas terá, também, algo de adverbial, com suas inequívocas conotações de “muitos”, além de propriedades superlativas que podem variar e, assim, conforme o contexto, significar qualquer número de difícil precisão. Além do mais, quem iria dar-se o trabalho de ficar contando pernas de muquirana? Melhor, mesmo, era admitir que fossem sete, conforme asseverado com autoridade pela moça do puteiro. 

O dicionário Aurélio consigna o caráter cosmopolita do chato, que vive normalmente na região pubiana, mas pode instalar-se com conforto em sobrancelhas e axilas. Não há registro da voz “cri-cri” senão como o estrídulo exasperante dos grilos, mas não tem importância. Todo mundo sabe que, no bestiário popular, “cri-cri” corresponde a um mitológico sub phthirius, provavelmente também de sete pernas, que prosperaria nos pentelhos dos chatos. (nm)

(*) Mesmo numa leitura linear, as Revelações expõem a insignificância do indivíduo confrontado com o Absoluto, seja o Tempo incompreensível ou os limites do universo, impossíveis de intuir. O resto é incandescente escatologia, cujo conteúdo apavorante uma assustada professora (1.1) de catecismo ia exorcizando com setenta e sete persignações, distribuídas conforme ia aflorando no texto cada sugestão do Maligno: Só se ela queria, mesmo, era apavorar com a lembrança aterradora das chamas dos infernos e com a perspectiva do fim do mundo, vingando-se daqueles fedelhos aborrecidos que lhe azucrinavam a vida de professora de matemática.

(**) Há que veja aí uma incongruência entomológica, partindo da ideia que prevalece em algumas regiões da nossa pátria salve, salve, que "muquirana" seria pernilongo, mosquito. Mas isso é irrelevante, posto que, no aborrecido e molesto, patenteia-se uma identidade irretorquível, ainda que meramente ideológica: muquirana é chato, sim senhor, e vice-versa.   

 

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Continua na próxima quarta-feira - 6/3

8 comentários:

  1. Bom dia Nilseu. O chato do chato não era o ziriguidum ?

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    1. Bom dia, meu anônimo amigo. Esses temas entomológicos sempre admitem alguma controvérsia. Confesso que nunca ouvi falar em "ziriguidum", a não ser como uma vinheta famosa, em seu tempo, do radialista Sargentelli.

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  2. José Daniel Machado1 de março de 2024 às 18:12

    Alô Nilseu,
    Obrigado pela lição de Entomologia. Pena que aos 14 anos eu não conhecia o bicho-de-sete-pernas, apenas o Chato, pai do Cri-cri.
    Mas, sua lição foi a tempo de tornar minha vida mais engraçada e menos chata. Detefon nele.
    Abração,

    Daniel.

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  3. É isso, Daniel. Mais uma vez, obrigado pela visita a O&B.

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  4. Caro Nilseu,
    Ótimo o seu texto. Muito obrigado por enviar, e pelo abraço a respeito da minha eleição para a AML. Continuemos ligados. Ótimo domingo.
    Do seu leitor e amigo,
    Carlos Herculano.

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    1. Ô, caríssimo Herculano:
      Sua visita e seu comentário generoso ilustram e alegram este O&B. Obrigado

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  5. Nilseu amigo, só com aquela simpática latinha amarela de Neocid, que, há quem diga, ainda existe à venda...

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    1. Pois é, Lélio. Já dizia, então, o reclame que a gente podia ouvir no rádio: "Neocid é de matar".

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