O sábado que passou tinha tudo para ser um dia aziago. A chuva ainda não se
havia decidido a lançar seus consoladores eflúvios sobre BH, ansiosamente
esperados depois de meses de secura e canícula, o fogo comendo solto nas serranias
do entorno da cidade, castigando flora e fauna; Havia desconforto e apreensão.
Aí, logo de manhã, o telefone e a notícia de que, naquela mesma madrugada, o
Plínio, Plínio Bossi Barreto, havia ido embora.
Como evitar o grande sentimento de perda? Ninguém evitou nada, mas a ideia
do Plínio indo embora ficou claramente dissociada de qualquer tristeza no
velório do Cemitério do Bonfim, onde uma legião de amigos e familiares foi se despedir
dele. Todos e cada um tinham lembranças boas e alegres do grande jornalista
que, caso raro, exerceu, e com a maior dignidade, a sua lide até a noite,
aquela noite em que recebeu a visita da Parca. Escreveu sua última crônica logo
depois de cerrar-se o crepúsculo dos seus 93 anos.
Ele nunca conheceu qualquer perda de lucidez e manteve intata a memória
prodigiosa, no semblante e nos olhos o brilho da inteligência com que terá
encarado sem medo uma respeitosa Fiandeira que sabia muito bem que Plínio não
tinha medo dela. Como no poema de Geir Campos, pôde apresentar-se diante dela
“sem marca ou cicatriz, limpas as mãos,
(...) a alma limpa, a face descoberta,
aberto o peito, e – expresso documento – a palavra conforme o
pensamento.”
Carregou desde sua longínqua infância a paixão do velho bairro da Lagoinha, que
expressou em textos memoráveis no livro “LAGOINHA MEU AMOR”, afetuosa metonímia
da cidade dos mais belos horizontes. Conhecia, no tempo e no espaço, e se
alegrava no amor de BH que, diga-se de passagem, sempre o quis muito bem.
Futebol ocupou muitos anos de sua longa carreira de jornalista, como
repórter, redator, editor, o escambau. Em 1976, quando já se ocupava de outras
áreas do jornalismo que não o esportivo, publicou, só por desenfado, “Futebol
no embalo da nostalgia”, um livro precioso, com histórias impagáveis
vivenciadas em anos e anos de experiência e trabalho, entesouradas nos cofres
de sua memória de prodígio.
Agora, o seguinte: privilégio era ouvi-lo numa mesa de botequim contanto
histórias que só ele era capaz de lembrar, conversas circunstanciadas com a
maior precisão quanto a datas e locais com gente que ele teve oportunidade de
conhecer ao longo de seus muitos anos de jornalismo, assim, Ary Barroso, Lamartine
Babo, Pixinguinha, e a turma do futebol, Zezé Moreira, Telê Santana, Garrincha, e
muitas histórias envolvendo Felício Brandi, o grande presidente do Cruzeiro
Esporte Clube, seu time do coração. Também da infância na Lagoinha, bairro construído
basicamente por imigrantes italianos, incluindo sua família, ele trouxe
a irremissível paixão do antigo Palestra, o Cruzeiro de hoje, paixão jamais
influiu no rigor profissional com que sempre tratou os fatos e a notícia.
Sujeito exemplar, o Plínio! E que jornalista!
Saudade? Claro, muita saudade, de seus amigos, de sua mulher e de seus sete
filhos e muitos netos. Mas saudade dessas que vêm devagar, envoltas em
lembranças boas e muito afeto. Nem poderia ser de outro modo, posto que, na
razão e na emoção, Plínio sempre foi antes de tudo um tremendo afetivo. Ele
gostava das pessoas que, talvez por isso mesmo, gostassem tanto dele. (NM)
sexta-feira, 30 de outubro de 2015
quinta-feira, 6 de agosto de 2015
Rosa Antuña apresenta “O Vestido” na Casa do Conde
A bailarina e coreógrafa Rosa Antuña apresenta neste final de semana, sábado, dia 8, às 20 h, e domingo, dia 9, às 19 h, o solo “O VESTIDO”, segundo de sua Trilogia do Feminino. A apresentação insere-se no Projeto Ocupação Diálogos da Funarte, no galpão 3 da antiga Casa do Conde (Rua Januária, BH), com ingressos a R$ 5,00 e R$ 2,50.
As fotos são de Marco Aurélio Prates
segunda-feira, 20 de julho de 2015
Ipês, paus d`arco, não importa: benza Deus!
O&B subestimou, em sua última postagem sobre as
floradas, a generosidade dos ipês. Aqueles tons de rosa inacreditáveis, à vezes
com tons violáceos, de azul outras vezes, estão por toda parte em BH, embora
sem a unanimidade de outros anos. Mesmo na Praça da Liberdade, onde a florada
começou tímida, chegou a habitual explosão de cores que, prenda dos paus d`arco, sempre enfeita e
alegra a cidade nesta época do ano. Benza Deus! (NM)
No cruzamento da Rua São Paulo, ali onde a Rua Felipe dos
Santos despenca rumo à Praça Camões (Marília de Dirceu) a florada dos paus d`arco converte uma perspectiva banal num vislumbre de pura magia na nossa paisagem urbana.
sábado, 18 de julho de 2015
Canastra com Mr. Sharif
Fernando Fabbrini (*)
Em homenagem a Omar
Sharif, que desembarcou da Nave na semana passada, e atendendo aos pedidos de
alguns amigos, segue crônica publicada originalmente no jornal O TEMPO em 16 de
março de 97.
Bigode e Magrelo tinham vinte e poucos anos. Eram
brasileiros, cabeludos e se diziam hippies. Chegaram à Europa de navio - porque
naquele tempo navio era muito mais barato - com mochilas, violões, sonhos de
liberdade e alguns trocados no bolso. Em pouco tempo já estavam ganhando uma
graninha em boates de segunda, corredores de metrô e arredores das
universidades. Pra completar, Magrelo ainda reforçava o orçamento com aulas de
bossa nova, acordes dissonantes, macetes e coisa e tal. Em Madri, uma das
alunas era Susan, uma americana que adorava o Brasil; tinha morado no Rio com
seu marido Pedro, um famoso produtor de cinema da época. Harpista de mão cheia,
Susan curtia transcrever para seu instrumento os acordes diferentes que Magrelo
sabia. De aula em aula, o casal ficou amigo de Magrelo e sempre o convidava
para as festas em sua mansão nos arredores da cidade. Magrelo chegava, tocava o
inevitável “Garota de Ipanema” e o jantar estava garantido.
Naquela noite de sábado ia ter mais festa. Magrelo tomou
banho, separou o jeans menos sujo,
botou seu velho Di Giorgio na surrada
capa de lona; conferiu as pesetas
para a passagem do metrô e saiu caminhando pela noite gelada. Chegando à
mansão, percebeu que a festa seria especial: carros de luxo na porta,
motoristas fardados, um agito diferente no ar. No salão imenso, gente
finíssima, mulheres lindas em vestidos tão brilhantes quanto decotados, risadas
e champanhe em profusão. Susan e Pedro receberam Magrelo com a simpatia
habitual:
— Que bom que você veio! Tem alguém aqui que você deve
conhecer... – disse Susan, puxando Magrelo pelo braço. Alguém que ele devia
conhecer era realmente alguém conhecidíssimo: nada menos que Omar Sharif, o
ator de “Doutor Jivago” e “Lawrence da Arábia” em pessoa. Velho amigo do casal,
ele estava na Espanha de passagem; foi convidado para a festinha e apareceu,
por que não?
— Nice to meet you!
- disse Sharif, com aquela voz de Hollywood. – Hummm... Brazilian? So, you play canastra,
don’t you?
Ora, ora! Que pergunta! Magrelo era viciado em jogo de
buraco e no seu similar, a canastra. Faltava um na mesa e lá foi Magrelo fazer
dupla com Omar Sharif, deixando o violão num canto. Jogaram a noite inteira e a
coalizão egípcio-brasileira estava com sorte. Ganharam várias rodadas. A cada
batida, Sharif dava palmadas nas costas de Magrelo, eufórico.
E Magrelo, desinibido por conta do bom uísque que corria solto, devolvia-lhe as
gentilezas, como se fosse a coisa mais normal do mundo bater nas costas de Omar
Sharif numa mesa de jogo. Fim de noite, Mr. Sharif – empapado de vodca como nos tempos
de “Doutor Jivago” – fez questão de abraçar o brasileiro:
— You are a wonderful
partner, my friend! - disse Omar, cambaleando. Depois, escorando-se numa
bela mulher, entrou numa Mercedes-Benz prateada e sumiu na neblina do
amanhecer.
Magrelo voltou para o Brasil tempos depois; engordou um
pouco, ficou mais velho, ganhou cabelos brancos e continua contando essa
história quando alguém lhe pede. Alguns acham que é pura invenção do Magrelo,
mas ele nem liga. Já está acostumado.
Nota de O&B – É assim mesmo, Fabbrini. Os bons sempre se
encontram, seja numa mesa de boteco ou numa roda de
carteado.
(*) Fernando Fabbrini
é roteirista, cronista e escritor, com dois livros publicados. Participa de
coletâneas literárias no Brasil e na Itália.
quarta-feira, 1 de julho de 2015
"Não faz mal que amanheça devagar"
Chegou a O&B , enviado por
Sônia Galastro, texto de Nazareth Soares, participante ativa e assídua do sarau
mensal frequentado por um grupo de mulheres, criado e alentado por ela há
muitos anos, quando ainda morava em BH. Sonel, hoje, vive na África do
Sul, mas o sarau mantém o fôlego e a vitalidade, graças a possibilidades que
vieram com a rede eletrônica, “apesar de algumas das participantes já terem
virado história”.
Não faz mal que amanheça devagar
Nazareth Soares
Gostaria que a madrugada
demorasse bem a despertar os sinais de passagem de tempo que se mostram no
rosto do meu amado. Ultimamente ele tem amanhecido cansado, desiludido consigo
mesmo porque vê com tristeza o corpo macilento e as pernas trôpegas.
- Fique um pouco mais na cama,
digo a ele. O dia ainda tarda a aparecer. Ele me olha com olhos desapontados e
me diz: - quero ver o dia amanhecer aos poucos, quero ver os primeiros raios de
sol caírem sobre o gramado do jardim. Não sei quanto tempo tenho ainda para ver
esse espetáculo e quero encher os olhos com a suavidade desta hora.
- Tenho médico hoje, não é?
Certamente ele irá pedir mais exames e me virará pelo avesso procurando alguma
machinha na pele, algum carocinho perdido neste corpo magro.
- Fique mais um pouco na cama, digo,
puxando o cobertor sobre o seu peito.
- Lembra-se daqueles dias que
passamos em Sevilha, ele me diz num tom que em nada combinava com o pouco
entusiasmo de antes. Você procurava vestígios do João Cabral, que foi cônsul
lá. Você estava certa de que encontraria os poemas dele em alguma livraria e
andamos muito atrás de poemas e livros que não encontramos. O calor intenso nos
obrigava a parar sempre que encontrávamos um lugarzinho menos cheio de
turistas. E quando voltávamos ao hotel, tontos de tanto andar, o sol ainda teimava
em iluminar as águas do Guadalquivir e nos fazia sentir, da maneira mais
intensa, os cheiros da Andaluzia. Com os
olhos fixos no anoitecer que custava a expulsar as cores da tarde e da cidade,
a gente sentou-se num dos muitos bancos à beira do rio e ficamos relembrando poemas do Cabral sobre Sevilha. A
gente ria muito porque o nosso entusiasmo pelos poemas sevilhanos do poeta não
nos garantia ter memória para recitá-los. Acho que até chegamos a declamar
juntos alguns versos do “Viver Sevilha”. Lembra-se?
Só em Sevilha o corpo está
com todos os sentidos em riste,
sentidos que nem se sabia,
antes de andá-la, que existissem;
sentidos que fundam num só:
viver num só o que nos vive,
que nos dá a mulher de Sevilha
e a cidade ou concha em que vive.
com todos os sentidos em riste,
sentidos que nem se sabia,
antes de andá-la, que existissem;
sentidos que fundam num só:
viver num só o que nos vive,
que nos dá a mulher de Sevilha
e a cidade ou concha em que vive.
Enquanto ele buscava na memória
os versos do poema, eu cavava outros tão significativos para mim naquele
momento.
Se viver-te será curto,
como pequena é Sevilha,
que viver-te seja intenso
carregado qual nova pilha.
como pequena é Sevilha,
que viver-te seja intenso
carregado qual nova pilha.
(Lições de Sevilha)
Até
recordei as brincadeiras que fazíamos vivendo nossa intensa felicidade,
amarrando a alegria de viver com versos sevilhanos do Cabral:
Tenho Sevilha em minha cama,
eis que Sevilha se faz carne,
eis-me habitando Sevilha
como é impossível de habitar-se.
(Mulher da Panaderia)
Ele se lembrou de que, em um
daqueles fins de tarde demorados, resolvemos comprar uma garrafa de vinho e ir
para o hotel para descansarmos um pouquinho antes do jantar. O vinho pediu umas
azeitonas pretas molhadas no azeite e um queijinho memorável. Lembra-se disso?
Lembrou-se até de que eu me recostei na cama com os pés quase tocando no chão e
que ele ficara folheando o livro do João Cabral. Qual era? Seria “Sevilha
andando”?
Madrugada
já quase dia, ele me disse: “ você acordou reclamando de mim por tê-la deixando
dormir e perder o jantar naquele restaurante que tinha uma comida deliciosa
regada a danças sevilhanas”. A
madrugada caía sobre os jardins do hotel
puxando o sol preguiçoso que já despontava sobre o rio. “Lembra-se de
que você se aconchegou melhor na cama, fechou os olhos e perdeu o espetáculo do
amanhecer? Perdeu o belo espetáculo daquele dia!”
Olho
para ele, tão magro e desamparado, tentando descobrir no seu rosto o entusiasmo
que havia visto em Sevilha quando andávamos como dois alucinados pelas becos e
vielas da cidade. Tentei buscar vestígios do homem valente que desafiava a
autoridade nos tempos do “Violão de rua”, no Rio de Janeiro, entusiasmado pelos
movimentos poéticos que explodiam numa cidade ameaçada pela ditadura cruel.
Eram os anos 60 e a gente participava ativamente de várias atividades contra o
regime imposto pelos militares.
O
“Violão de Rua”, dizem agora os que estudam o período, foi a maior expressão do
Romantismo Revolucionário da década de 60. O movimento contou com o apoio de poetas
como Geir Campos, Ferreira Goulart, Reynaldo Jardim, Vinícius de Morais,
Affonso Romano de Sant’Anna e outros de que não me lembro mais. Para nós, ele
era ardor, entusiasmo e esperança de liberdade. Éramos jovens e nosso amor era
partilhado com a certeza de que o mundo voltaria a ser melhor porque mais
justo.
Olhando-o
tão desamparado ainda na cama, meus olhos retomam cenas daquele tempo: estamos
na Avenida Presidente Vargas ouvindo os poetas do Violão de Rua. Geir Campos
declama um poema romântico e a gente entende que “Alba” é uma referência
simbólica ao amanhã que se projeta nos discursos inflamados dos jovens, nos
versos declamados com paixão. O corpo cansado que eu vejo agora estava cheio de
vigor. Magro, muito magro, mas forte para as muitas tarefas que fazia.
Olho para ele com ternura, muita
ternura, procurando reconhecer no rosto de hoje os traços do jovem que me
conduzia pelas estradas de revoluções que aconteciam em tantos lugares: nos
Estados Unidos, com Luther King, em Praga e em Paris, nas ruas cheias de
estudantes revoltados.
Relembro
o entusiasmo dele nas passeatas, na distribuição de livros de poemas nas
estações de trem, nos pontos de ônibus. Os livrinhos do “Violão de Rua”, agora,
na minha imaginação, misturam-se aos poemas de João Cabral sobre Sevilha, aos
passos fortes das dançarinas de vestidos rosa forte, amarelo ouro, azul
turquesa; pentes imensos nos cabelos, leques e castanholas nas mãos.
Misturam-se ao gosto das “tapas”que comíamos pelas ruas de Sevilha.
“Não
faz mal que amanheça devagar”, digo baixinho para mim mesma. Ele estará
protegido do desatino do dia e do muito que pensa ter tempo de fazer ainda.
“Não faz mal que amanheça devagar”, porque teremos tempo para reviver os nossos
sonhos distantes, as muitas aventuras que vivemos juntos e, quem sabe, até nos
prepararmos para, ao anoitecer, bebermos uma taça de vinho espanhol como nos
velhos tempos, lembrando os versos de “Alba” do Geir Campos:
Não faz mal que amanheça devagar,
as flores não têm pressa nem os frutos:
sabem que a vagareza dos minutos
adoça mais o outono por chegar.
Portanto não faz mal que devagar
o dia vença a noite em seus redutos
do leste — o que nos cabe é ter enxutos
os olhos e a intenção de madrugar.
as flores não têm pressa nem os frutos:
sabem que a vagareza dos minutos
adoça mais o outono por chegar.
Portanto não faz mal que devagar
o dia vença a noite em seus redutos
do leste — o que nos cabe é ter enxutos
os olhos e a intenção de madrugar.
Na evocação do “Operário do canto”
Nazareth trouxe a este blogue lembranças de João Cabral e de
Sevilha que enriquecem e alentam, por mais recorrentes que sejam aqui em
O&B. A evocação de Geir Campos, tão sumido das súmulas literárias, das
tertúlias de botequim, sumido de tudo, surpreende mais e, por isso mesmo, mais
alegra o coração. Houve um tempo, porém, que declamar “Da profissão do poeta” ,
principalmente os versos incluídos por Millor e Milton Rangel no exórdio de “Liberdade,
Liberdade”, que a voz portentosa de Paulo Autran levou aos quatro cantos do
Brasil, foi realmente impositiva para toda uma geração de brasileiros:
Operário do canto, me apresento
sem marca ou cicatriz, limpas as mãos,
minha alma limpa, a face descoberta,
aberto o peito, e — expresso documento —
a palavra conforme o pensamento.
sem marca ou cicatriz, limpas as mãos,
minha alma limpa, a face descoberta,
aberto o peito, e — expresso documento —
a palavra conforme o pensamento.
(...)
Trabalho à noite e sem revezamentos.
Se há mais quem cante, cantaremos juntos;
sem se tornar com isso menos pura
a voz sobe uma oitava na mistura.
Se há mais quem cante, cantaremos juntos;
sem se tornar com isso menos pura
a voz sobe uma oitava na mistura.
Não canto
onde não seja o sonho livre,
onde não haja ouvidos limpos e almas
afeitas a escutar sem preconceito.
Para enganar o tempo ou distrair
criaturas já de si tão mal atentas,
não canto...
onde não haja ouvidos limpos e almas
afeitas a escutar sem preconceito.
Para enganar o tempo ou distrair
criaturas já de si tão mal atentas,
não canto...
Canto apenas
quando dança,
nos olhos
dos que me ouvem, a esperança.
Mas, aí, vêm aqueles versos emocionantes, pungentes, versos que, de algum modo suscitam umas
vibrações de “As Parcas”, de Hölderlin. O blogueiro se refere a “Questões de
Tempo”, um momento particularmente inspirado da poesia de Geir:
Quem perguntará por mim
quando a última passar
com seu facão?
Que mulher grave desfalecerá
vendo apagados meus olhos
na multidão?
Que homem de bem guardará
o adeus meu
seco na palma da mão?
Quem lembrará minha voz
coral ausente
em qualquer canção?
Quem se pagará a herança
inteira ou em pedaços
do meu indivisível coração?
E a quem a flor
de raiz em mim
fará os acenos do não?
quando a última passar
com seu facão?
Que mulher grave desfalecerá
vendo apagados meus olhos
na multidão?
Que homem de bem guardará
o adeus meu
seco na palma da mão?
Quem lembrará minha voz
coral ausente
em qualquer canção?
Quem se pagará a herança
inteira ou em pedaços
do meu indivisível coração?
E a quem a flor
de raiz em mim
fará os acenos do não?
(NM)
quarta-feira, 24 de junho de 2015
Inverno, floradas,devastação na Praça
Depois do solstício de junho, registrado e celebrado no dia
21, agora é oficial: o inverno chegou ao
nosso hemisfério, mas, do ponto de vista das temperaturas, chegou indeciso,
instável, volúvel, leviano, alternando intempestivamente frio e calor no mesmo
dia, na mesma noite, sem preocupar-se em afirmar quaisquer convicções próprias
da estação.
Em BH, não fosse pelas informações de folhinha, da Folhinha
de Mariana, principalmente, a gente nem notaria a presença dele. O&B,
porém, não teria como ignorar sua presença ilustre, não depois da mensagem
generosa e estimulante, sobretudo em tempo de muita preguiça, de Luiz Fernando
Perez, amigo do blogueiro que, sempre de ânimo compassivo, frequenta o blogue.
“Oi Nilseu,
Nas vésperas do
inverno, ainda não tive a satisfação de ler sua inspirada celebração anual para
comemorar a floração dos ipês, na despedida do outono. Na Praça da Liberdade,
já há manifestações florais discretas, mas estou à espera do grande espetáculo
da natureza, que não falha, apesar das agressões humanas. O festival roxo,
rosa, branco e amarelo talvez só esteja aguardando seu empurrão poético. Um
abraço amigo, LFPerez”
Antes de alcançar os ipês, sobretudo os da família “tabebuya
avellanedae”, que, de fato, apenas começam a levar à Praça da Liberdade as
cores do inverno, rosa clarinho e aqueles róseos gentis, quase azulados (ainda
não chegou a hora do ouro baço dos ipês amarelos), a pequena câmera digital distraiu-se
na Praça da Savassi, surpreendida pela florada persistente das quaresmeiras, olhe
que a Páscoa já ficou lá atrás, árvores da família das melastomáceas, dos
gêneros Tibouchina e Rhynchanthera. Calma, gente! Esses nomes empolados são coisa
de cientistas. Elas árvores atendem por “quaresmeiras”, simplesmente, “manacás-da-serra”,
sons que contêm muito de sua poesia vegetal. Ó nobilíssimas entidades que
carregais todos os tons de violeta, tanto rosa, tanto azul, tons que enfeitam
nossas ruas, nossos parques, nossas vidas!
Dois exemplares magníficos estão no umbigo da Savassi, ali onde
a Rua Antônio de Albuquerque desemboca na Praça Diogo Vasconcelos propriamente
dita, o influxo vital de tantas flores sobre a estátua de bronze do escritor
Roberto Drummond, sobre a rua, sobre a praça, sobre a cidade. Lá do alto, até
as estrelas se comprazem em seus tons de ametista, topázio, até algum fulgor de
rubi, que se combinam e realizam nas cores da Paixão.
Na Praça da Liberdade já há florada de paus d`arco, que,
todavia, não chegou unânime nem exuberante demais, como de outras vezes. Talvez
os ipês ainda estejam se refazendo do esplendor ostentado ano passado, mas
também pode ser cansaço pela utilização demente daquele espaço por gente ensandecida
que, mais e mais, em nome de conceitos discutíveis de “revitalização”, saturam
a grande praça de Minas de decibéis, decibéis de caixas de som trazidas
diretamente do meio dos infernos.
Tudo que é vivo se ressente, goram as ninhadas no arvoredo, pássaros
voam pra longe levando seu espanto, pensativas, as árvores tentam resistir. “A
praça é do povo”, mas prevalece uma apropriação do decreto de Castro Alves enviesada,
favorável a pequenos e grandes vandalismos, o das multidões desgovernadas que
chegam com impacto devastador, ou de duas ou três dezenas de pessoas que se
revezam passeando com seus cachorros no círculo gramado, uns oito ou dez metros
de diâmetro, da fonte da ninfa, o que a grama não pode suportar.
No último sábado, uma senhora, indignada em seus mais de
setenta anos, apelava em vão à gentileza urbana do bando de capadócios que nem
notava estar destruindo o gramado e defenderam bravamente seu inalienável direito
de transformar jardim em deserto. E os cachorros, hem? Uma mocinha,
produzidinha, bem falante, prá lá de “fashion”, lembrou com muita autoridade à
mulher que reclamou que “cachorro também é humano”, como proclamou, em seu
tempo, o ministro Magri. Mas a água da fonte está suja, a grama morrendo, a
ninfa, mais uma vez, de braço quebrado. Assim, nem ipê aguenta e, é melhor
mesmo que esconda as galas de sua inflorescência. (NM)
segunda-feira, 11 de maio de 2015
A força que elas têm
Um fim de semana atípico: sexta-feira assisti ao show de
Monica Salmaso (ao lado de Dori Caymmi) interpretando o incomparável
Dorival, Maria Bethânia completando 50 anos de carreira e a
interpretação de Rosa Antuña com o espetáculo “A mulher que cuspiu a maçã”. Sábado
era dia de Maria Bethânia no show “Abraçar e Agradecer” em que comemora os 50
anos de carreira, que começou lá com a música ‘Carcará’...
(...)
Domingo, dia das mães. Fim de noite e vou lá para o teatro
do CCBB – Centro Cultural Banco do Brasil para assistir a última apresentação
de Rosa Antuña com seu espetáculo “A mulher que cuspiu a maçã”. Não, não há
muito o que falar. É preciso assistir para se emocionar do princípio ao fim. Quarenta
e cinco minutos de adrenalina e comoção. Como pode uma única criatura em cena
transformar a vida num ir e vir de ser e não ter e querer e escolher e pedir e
desistir e envolver e sensualizar e jogar o resto da maçã para o ar. Assim é o
resumo desse espetáculo. Resumo, repito, pois não há como dimensionar cada
gesto, cada olhar, cada ‘suspiração’ dessa bailarina, dançarina, atriz, performer chamada Rosa Antuña.
O palco é dela. Assim como Monica abusa dos graves e
Bethânia das emoções, Rosa Antuña se transforma numa artista antenada em seu
tempo presente passado futuro. Ela não surgiu agora. Ela mostra que ouviu
muito, viu tudo e olha com detalhe a evolução de cada uma de nós. Ela respira
vida, transforma o riso em choro, as lágrimas em sal da terra. Foi um fim de
semana especial. Conheci e reconheci a força de três mulheres que são assim: de
carne, osso e alma. Com silêncio e respeito. Com alegria e dor. Com abraço e
agradecimento. Com amor e emoção.
Ainda o solo de Rosa Antuña
Depois de assistir a apresentação do espetáculo solo de Rosa Antuña, “A Mulher que Cuspiu a Maçã”, que emocionou o público que compareceu ao teatro do Centro Cultural Banco do Brasil, no último fim de semana, o Prof. José Maria Santos enviou suas impressões em generosa mensagem que O&B faz questão de postar:
Caro amigo Nilseu,
Escrevo-lhe a fim de agradecer-lhe o presente recebido na forma de um convite para assistir ao espetáculo "A Mulher que Cuspiu a Maçã", apresentado por Rosa Antuña. Fiquei mesmerizado do primeiro ao último minuto. Perfeita é o adjetivo para apropriado para sua performance. Ela demonstrou ser uma artista incrível, capaz de executar um solo de uma hora sem deixar de dominar o espaço do palco por um minuto sequer, usando apenas o corpo como expressão de múltiplas emoções e retirando de um número limitadíssimo de objetos simples (uma necessaire, um par de sapatos, uma escova de dente, uma calcinha sexy e um pedaço de tecido) uma quantidade inacreditável de significados e potencialidades.
Esse é um espetáculo que enobrece o termo "modernidade", tão vilipendiado por fraudes sem conta de pseudoartistas que o usam para justificar suas limitações. Rosa Antuña, ao contrário, é visceral, e por isso nos atinge no âmago com sua ironia, com sua paródia iconoclasta, com sua capacidade de dominar o público o tempo todo com seu olhar cortante como aço, como se exercesse domínio sobre cada um dos espectadores individualmente. Julgo um privilégio ter tão perto de nós uma artista tão linda e com um talento tão extraordinário, acostumados que estamos a ver performances desse nível somente em terras estrangeiras. E foi com o coração acelerado pela emoção do espetáculo que somei meus aplausos espontâneos e incontidos aos dos espectadores que, emocionados, com muita justiça, aplaudiram-na de pé!
sábado, 9 de maio de 2015
A fonte misteriosa das poetas
Versos de Consuelo Velazquez e de
Maria Grever, damas de bolero, de Dolores Duran, dama de samba-canção, e versos
de Florbela. Infeliz Florbela, tão doce e tão amável, no destino de tragédia e
no tom da poesia, dama de fado.
Bésame, bésame mucho,
Como si fuera esta noche
La última vez.
(...)
Piensa que tal vez mañana,
Estaré muy lejos,
Muy lejos de aquí.
Como si fuera esta noche
La última vez.
(...)
Piensa que tal vez mañana,
Estaré muy lejos,
Muy lejos de aquí.
(Consuelo Velazquez)
Te quiero, dijiste
poniendo mis manos
entre tus manitas
de blanco marfil.
Y sentí en mi pecho
un fuerte latido,
después un suspiro
y luego el chasquido
de un beso febril.
Muñequita linda
de cabellos de oro, etc.
poniendo mis manos
entre tus manitas
de blanco marfil.
Y sentí en mi pecho
un fuerte latido,
después un suspiro
y luego el chasquido
de un beso febril.
Muñequita linda
de cabellos de oro, etc.
(Maria Grever)
A primeira e a última estância
materializam-se em formas subjuntivas, as intermediárias vêm totalmente
apoiadas numa sucessão de gerúndios que, o mais provável, seria descambar para
o enfadonho, mas não é assim. O que temos é um lirismo desconcertante, lirismo
de Dolores, brilhos, cores, aromas, texturas, as harmonias mais sutis do
sentimento apaixonado. Ah! Dolores!
Hoje, eu quero a rosa mais linda que
houver
Quero a primeira estrela que vierPara enfeitar a noite do meu bem
Hoje, eu quero a paz de criança
dormindo
E o abandono de flores se abrindo
Para enfeitar a noite do meu bem
Quero, a alegria de um barco voltando
Quero a ternura de mãos se encontrando
Para enfeitar a noite do meu bem
Hoje, eu quero o amor, o amor mais profundo
Eu quero toda a beleza do mundo
Para enfeitar a noite do meu bem
Quero, a alegria de um barco voltando
Quero ternura de mãos se encontrando
Para enfeitar a noite do meu bem
Ai! como esse bem demorou a chegar
Eu já nem sei se terei no olhar
Toda a ternura que eu quero lhe dar
E o abandono de flores se abrindo
Para enfeitar a noite do meu bem
Quero, a alegria de um barco voltando
Quero a ternura de mãos se encontrando
Para enfeitar a noite do meu bem
Hoje, eu quero o amor, o amor mais profundo
Eu quero toda a beleza do mundo
Para enfeitar a noite do meu bem
Quero, a alegria de um barco voltando
Quero ternura de mãos se encontrando
Para enfeitar a noite do meu bem
Ai! como esse bem demorou a chegar
Eu já nem sei se terei no olhar
Toda a ternura que eu quero lhe dar
(Dolores Duran)
Aqueles que
me têm muito amor
Não sabem o
que sinto e o que sou...
À minha
porta e, nesse dia, entrou.
E é desde
então que eu sinto este pavor,
Este frio
que anda em mim, e que gelou
O que de bom
me deu Nosso Senhor!
Se eu nem
sei por onde ando e onde vou!!
Sinto os
passos de Dor, essa cadência
Que é já
tortura infinda, que é demência!
Que é já
vontade doida de gritar!
E é sempre a
mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma
angústia funda, sem remédio,
Andando
atrás de mim, sem me largar!
(Florbela Espanca)
O&B acrescenta, um tanto
arbitrariamente, uns versos de Angela, Malluh, Sônia, Adriana, Maria Cecília, Alcea,
Rosinha, estas, é bem verdade, amigas do blogueiro. não para estabelecer
qualquer tipo de contraponto, mas para vislumbrar a possibilidade, tentadora,
de uma fonte de muitas intuições, bruxedos, sabe como é, fonte de muitos
mistérios, exclusiva das poetas e comum a todas elas. Um espírito distraído pode
até a achar que elas não distinguem o real de virtualidades recorrentes, sem
dar-se conta de, apenas, não se preocuparem em distinguir. E, no entanto, em
seu espelho de palavras, reflete-se todo o non
sense das coisas e da vida!
Onde anda o
luar
nesta noite
escura dentro
de meu
coração?
(Angela Leite em “Lição das Horas” - Editora Miguilim)
Eu saí em minha casa procurando por mim.
No
banheiro eu não estava.
No quarto, também não.
Talvez na quinta, num bar qualquer (...)
(Malluh Praxedes)
É no repouso
da memória
que amanso
minha solidão;
reviro meus
recônditos,
faço
leituras de mim.
Canalizo
energias,
volatilizo
espaços
e
temporalizo rios.
Pensar é
também viver
como o
agricultor sedentário (*)
que semeia grãos invisíveis.
(Sônia Galastro)
(*) Referência ao rurícola da "Teoria da Viagem - Poética da Geografia" , de Michel Onfray
(*) Referência ao rurícola da "Teoria da Viagem - Poética da Geografia" , de Michel Onfray
meça suas palavras, ele disse
medi e eram
do tamanho do mundo
não cabiam
mais em mim
atravessaram
oceanos
e as veias
quentes do corpo
saíram pelos
poros em meu suor
e
desapareceram
como as tardes mornas de dezembro
(Adriana Godoy - Sem rumo)
Lâmpada
Uma janela
aberta,
uma lâmpada
pendurada
do lado de
fora
– cheia de idéias
–
e nós, do
lado de dentro
olhamos as
idéias penduradas
do lado de
fora
– cheias de
janelas!
(Rosa Antuña Martins)
Entre a pele
na mancha:
Repuxam
esteios pelos arrepios
Que iludem
espaço
Pelo avesso
do senso óbvio.
Quinam-se
pescoço e queixo-duplo,
Mas antes de
alcançar a preguiça
Para
arrancar os tecidos já mortos da mucosa
Pelo abaixo
que se esteira em bubuias soltas
Formigam-lhe
os tendões anestesiados.
(Maria Cecília Rodrigues Campos - In-tenso)
Às vezes não
basta ser.
Às vezes ser
não basta.
Às vezes
precisa-se ser
duas, dez,
dúzias,
para se ser
uma só.
(...)
Invista em
Ser isto e
aquilo
sem pressa e
com estilo.
Calmamente,
simplesmente,
integralmente
SER.
Mulher.
(Alcéa Romano - Mulher)
Agora sim, um contraponto, este totalmente
arbitrário, de Antônio Machado:
En la mar de
la mujer
pocos
naufragan de noche,
muchos ao
amanecer.
(NM)
sexta-feira, 8 de maio de 2015
Noite inesquecível no CCBB
A estreia de “A mulher que cuspiu a maçã” foi um tremendo “happening”,
quarenta e cinco minutos de tirar o fôlego. Rosa Antuña brindou o público que
compareceu ao teatro do Centro Cultural do Banco do Brasil, na Praça da
Liberdade, em BH, com bom gosto e o melhor de sua técnica refinada. Foram
momentos de pura arte, muita arte, inesquecíveis.
O espetáculo será reapresentado hoje (sexta-feira), no
sábado e no domingo, sempre às 20 horas. Vale a pena, vale muito a pena, ir ao
teatro do CCBB para ver a performance de Rosa Antuña. “A mulher que cuspiu a
maçã” é um espetáculo lúcido, brilhante, bonito. Em sua criação e realização,
experiência, técnica e sensibilidade, além da genuína vocação de artista de
Rosa Antuña. (NM)
sexta-feira, 17 de abril de 2015
Réquiem por uma mangueira que caiu em Lourdes
Rua da Bahia, entre Antônio Albuquerque e Fernandes
Tourinho, na altura que corresponde mais ou menos ao número 2567, Bairro de
Lourdes, BH. Os especuladores imobiliários chegaram, compraram a velha e
charmosa casa que havia no lugar e, rapidamente, demoliram tudo e transformaram
a área em estacionamento, enquanto iam ultimando os meios e os
termos para a construção de mais um prédio.
Um enorme pau d´arco guarnecia o acesso ao terreno e, nos
fundos, gloriosa remanência dos antigos pomares de Lourdes, uma mangueira de
uns oitenta, cem anos, gigantesca catedral verde. A consciência dos homens
anda desandada. Ambição, ganância, cupidez, sabe
como é. Mas os homens há muito deixaram de ser o centro do Universo, com o qual,
aliás, parece terem perdido toda e qualquer conexão, nesta estranha época de
indiferença e soberba, preparatória do advento do Capeta e da escuridão
irremissível que o Livro das Revelações antecipa.
O ruído exasperante de moto serras começou cedo na manhã da
última quarta-feira e, na quinta, ainda persistia implacável, no afã de
fragmentar a madeira do que, até a véspera, tinham sido árvores monumentais.
Que tristeza! Desde as grades que guarnecem os muros do estacionamento,
pombas-trocazes tímidas e amáveis; há muita perplexidade nos olhinhos das
pequenas almas aladas, cuja gentileza silvestre não pode compreender a
devastação gratuita.Ó espanto, ó desolação!
A consciência dos homens anda desandada, mas a consciência
vegetal, de outra ordem, funda-se na paciência e na generosidade e perde o rumo nem o fulcro. Ela
ainda será gala e ornato deste nosso
mundo insensato mesmo quando os homens
tenham consumado seus mais sombrios impulsos de autodestruição.Tanto o pau
d`arco quanto a mangueira intuíram, por assim dizer, o que estava por vir e
vestiram suas cores mais bonitas para aguardar o desfecho. Primeiro a florada
magnífica, depois, os frutos sazonados que, ao serem abatidos por moto serras, entregaram
à terra pela última vez .
(NM)
quarta-feira, 1 de abril de 2015
Battistella, Jader de Oliveira, Carlos Alberto
Na quarta-feira de 2011 a Parca intempestiva e caprichosa reivindicou
para si a generosidade e o bom humor de
Jader de Oliveira, privando de seu convívio a animada tertúlia de incontáveis
manhãs de domingo na calçada do Tip Top, na Rua Rio de Janeiro, em BH. No
Sábado de Aleluia daquele ano, passado o primeiro impacto da grande perda, este
O&B publicou texto ocioso e anacrônico sobre o tango Cuartito Azul, só para evocar momentos bons da presença amiga dele.
Agora, também, a de Carlos Alberto de
Barros Santos, com quem compartilhava irremissível preferência pela canção de
Mores e Battistella. A reinserção da postagem pode ser só nostalgia de
blogueiro, mas também pode ser que não:
Para quem nunca tenha
lido um verso de Chénier
(Sábado, 23 de abril de 2011)
Em delicada prosopopéia, a personagem que toma por confidente o
“Cuartito azul de mi primera pasión”, no tango de Mores e Battistella, abre-se
feito se abriria um branco jasmim que exalasse os mais recônditos aromas de seu
afeto, depois de sofrer as penas de uma ruptura apenas sugerida, para
transformar-se em confortadora nostalgia na memória e na consciência. Mas é uma
canção de 1939, e seria de todo impossível justificar o extemporâneo de
qualquer discussão, fora de um contexto estrito de história do tango que, aqui,
não se aplica. Mas nesta aziaga Semana Santa, na quarta-feira, veio a notícia
da partida de nosso amigo Jader de Oliveira. Ele era doido por tangos em geral
e, em particular, por esse de Marianito Mores e Mário Battistella, que cantou
mais de uma vez em tertúlias no Tip Top. A voz não ajudava muito, mas era afinado
e hábil com as inflexões. A preferência por esse tango, compartilhada por
Carlos Alberto, de algum modo também explicitava a grande amizade de toda a
vida, deles dois.
Agora o seguinte, nesse tango, Battistella e Mores alcançam as mais elevadas esferas da inspiração e da criação. “Cuartito Azul”, a par de canção belíssima é de desconcertante eficácia, fundada sobretudo na metagoge encantadora. É através dela que as nuances do sentimento de um amor arrebatado vão sendo desveladas, contadas/cantadas pela primeira vez pela voz de Ignácio Corsini:
Cuartito azul
Tango - 1939
Música: Mariano Mores
Letra: Mario Battistella
Cuartito azul, dulce morada de mi vida,
fiel testigo de mi tierna juventud,
llegó la hora de la triste despedida,
ya lo ves, todo en el mundo es inquietud.
Ya no soy más aquel muchacho oscuro;
todo un señor desde esta tarde soy.
Sin embargo, cuartito, te lo juro,
nunca estuve tan triste como hoy.
Cuartito azul
de mi primera pasión,
vos guardarás
todo mi corazón.
Si alguna vez
volviera la que amé
vos le dirás
que nunca la olvidé.
Cuartito azul,
hoy te canto mi adiós.
Ya no abriré
tu puerta y tu balcón.
Aquí viví toda mi ardiente fantasia
y al amor con alegria le canté;
aquí fue donde sollozó la amada mía
recitándome los versos de Chénier.
Quizá tendré para enorgullecerme
gloria y honor como nadie alcanzó,
pero nada podrá ya parecerme
tan lindo y tan sincero
como vos.
A partir da sutil invocação do testemunho e cumplicidade de umas paredes pintadas de anil, que, de repente, ganham vida, consciência e plenitude de sentimentos na letra de Battistella, é tudo um espevitar de lembranças e reiteração do amor apaixonado. E há aquela referência a André Chénier, insólita, quase esotérica, que impregna o “cuartito azul” de um lirismo mágico, prenunciador do Romantismo.
Agora o seguinte, nesse tango, Battistella e Mores alcançam as mais elevadas esferas da inspiração e da criação. “Cuartito Azul”, a par de canção belíssima é de desconcertante eficácia, fundada sobretudo na metagoge encantadora. É através dela que as nuances do sentimento de um amor arrebatado vão sendo desveladas, contadas/cantadas pela primeira vez pela voz de Ignácio Corsini:
Cuartito azul
Tango - 1939
Música: Mariano Mores
Letra: Mario Battistella
Cuartito azul, dulce morada de mi vida,
fiel testigo de mi tierna juventud,
llegó la hora de la triste despedida,
ya lo ves, todo en el mundo es inquietud.
Ya no soy más aquel muchacho oscuro;
todo un señor desde esta tarde soy.
Sin embargo, cuartito, te lo juro,
nunca estuve tan triste como hoy.
Cuartito azul
de mi primera pasión,
vos guardarás
todo mi corazón.
Si alguna vez
volviera la que amé
vos le dirás
que nunca la olvidé.
Cuartito azul,
hoy te canto mi adiós.
Ya no abriré
tu puerta y tu balcón.
Aquí viví toda mi ardiente fantasia
y al amor con alegria le canté;
aquí fue donde sollozó la amada mía
recitándome los versos de Chénier.
Quizá tendré para enorgullecerme
gloria y honor como nadie alcanzó,
pero nada podrá ya parecerme
tan lindo y tan sincero
como vos.
A partir da sutil invocação do testemunho e cumplicidade de umas paredes pintadas de anil, que, de repente, ganham vida, consciência e plenitude de sentimentos na letra de Battistella, é tudo um espevitar de lembranças e reiteração do amor apaixonado. E há aquela referência a André Chénier, insólita, quase esotérica, que impregna o “cuartito azul” de um lirismo mágico, prenunciador do Romantismo.
O poeta foi guilhotinado em 1794, durante o Terror, aos 32 anos,
dois dias antes que Robespierre, seu algoz, conhecesse a mesma sorte.
Argentinos que viveram as primeiras décadas do Século XX sempre estiveram
expostos aos influxos da cultura francesa, mas não é abusivo especular, ainda
que num âmbito de botequim, que Battistella tenha usado Chénier como cortina de
fumaça. Era muito recente, então, o assassinato de Federico Garcia Lorca pelos
franquistas, vítima da mesmíssima combinação maligna de radicalismo,
intolerância, prepotência e brutalidade. A Argentina de 1939 estava em plena
“Década Infame”, governo de Roberto Marcelino Ortiz, muita corrupção, muita
repressão. Se tivesse tido oportunidade, teria perguntado a Battistella se, de
fato, ele não pretendeu lançar luzes sobre Chénier para projetar a sombra de
Lorca... Governantes argentinos, militares ou civis, quanto mais corruptos,
mais idolatravam o generalíssimo espanhol e, talvez, não fosse prudente
naqueles tempos mencionar diretamente o poeta andaluz.
Mas voltemos ao plano do botequim e ao tipo de conversa que suscita e admite: havia muitas pessoas em torno do chope bem cortado e da cachaça de Salinas do Tip Top, entre as quais muitos leitores vorazes e contumazes que, unanimemente, responderam que não à pergunta “alguém aí já leu Chénier?”
Chega a ser estranho, considerando-se que Chénier está há mais de dois séculos no panteão dos poetas da França, não por seu destino trágico, mas por sua altíssima poesia, que nunca deixou de interessar aos críticos, em seu país e alhures. Mas registro apenas um comentário de Rubén Darío que, com autoridade, dá boa medida das qualificações do poeta: “Entiéndase que nadie ama con más entusiasmo que yo nuestra lengua [...] y que soy enemigo de los que corrompen el idioma; pero desearía para nuestra literatura un renacimiento que tuviera por base el clasicismo puro y marmóreo en la forma, y con pensamientos nuevos; los de Chénier, llevado a mayor altura: arte, arte y arte.”
E para quem nunca tenha lido um verso de Chénier, busquei na Anthologie de
Élégie
André Chénier
Jeune fille, ton coeur avec nous veut se taire.
Tus fuis, tu ne ris plus; rien ne saurait te plaire.
La soie à tes travaux offre en vain des couleurs;
L´aiguille sous tes doigts n`anime plus des fleurs.
Tu n`aime qu´à rever, muette, seule, errante,
Et la rose pâlit sur ta bouche expirante.
Ah! mon oeil est savant et depuis plus d`un jour;
Et ce n`est pas à moi qu`on peut cacher l´amour.
Les belles font aimer; elles aiment. Les belles
Nous charment tous. Heureux qui peut être aimé d`elles!
Sois tendre, même faible; on doit l`être um moment;
Fidèle, si peux. Mais conte-moi comment,
Quel jeune homme aux yeux bleus, empressés, sans audace,
Aux cheveux noirs, au front pleine de charm et de grace...
Tu rougis? On dirait que je t`ai dis ton nome.
Je lê connait pourtant. Autour de ta maison
Cèst lui qui va, qui vient; et laissant ton ouvrage,
Tu vas, sans te montrer, épier son passage.
Il fuit vite; et ton oeil, sur as trace accouru,
Le suit encor logtemps quand il a disparu.
Certe, en ce bois voisin ou trois fêtes brillantes,
Nul na as noble aisance et son habile main
À soumettre un coursier aux volontés du frein.
(*) Éditions Bernard Valiquette – Montreal
(NM)
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