segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Pedro, Gaspar, Belchior e Baltazar

(Sem imaginação, sem energia, só preguiça, o blogueiro tem deixado O&B morrer à míngua. Hoje, porém, para pagar obrigação aos Santos Reis, republica a postagem do dia 6 de janeiro do ano passado. Pede desculpa a todos.)

Antes de sua vida desandar, e andou desandando demais, ele era “Pedro Gonçalves da Costa”, nome de fidalgo português, de desembargador da República Velha, quem sabe, o primeiro que perdeu, junto com sua mulinha nova e bem arreada, “pantaneiro”, rédeas bem trançadas, coxinilho, chapéu novo.... E foi logo na primeira vez que apareceu na corrutela. Umas boas talagadas de cachaça e achou de visitar o acampamento de ciganos num pequeno pasto, na saída do arraial, já perto do córrego. Voltou montado num cavalo velho, a arreata desfalcada de alguns itens de prestígio, como os estribos de alpaca.

– O que que é isso, Pedro! Os ciganos lhe passaram a perna.

Naquele mesmo sábado esteve várias vezes naquele acampamento, sempre depois de umas talagadas, o que favorecia os ciganos, afeitos a qualquer tipo de escambo: “Se anima, gadjó, tenho boa proposta pela montaria”; “Gostei da guaiaca, paisano”; “Chapéu bonito, mas a fita parece de mulher”. Começavam os negócios mais ou menos assim, aqueles mestres das trocas improváveis. Fácil para eles conseguir dar uma mula velha por um cavalo novo. O que ninguém viu? A cor do dinheiro de qualquer um deles.

Prejuízo e prestígio a recuperar e, a cada “trama”, pior. Antes de acabar o sábado, cabisbaixo, na maior ressaca, puxava, por uma corda a égua manca e cega de um olho, em pelo, o que sobrara de sua mulinha nova muito bem arreada. Aí, velho, a crueldade implacável dos botequins: Pedro Gonçalves da Costa virou “Pedro Égua”.

De mais novo, tinha andado em muita folia Reis, o que rendia camaradagem e assunto entre ele e o Crisoste, antigo capitão de prestigiosa companhia. Pedro veio se aproximando em passo de velho, devagar. Tinha, então, uns quarenta e poucos anos, mas aparentava sessenta ou mais: cabelos brancos, a cara enrugada, o andar trôpego.

 –  Bom dia Crisoste. Trerreissan tá co`cê, tá?

 – Tá sim, Pedro. Todos os treis, Gaspar, Belchior e Baltazar...

Com a mão direita espalmada, bateu três vezes no lado esquerdo do peito. Pedro repetiu o gesto e estendeu a mão para receber do outro o troco para uma cachaça ou duas, implícito em seu cumprimento devoto e, em seguida, rumou, andando devagar, para o boteco mais próximo.

Tantas perdas, a mula bem arreada, sua riqueza, o nome de certa pompa, sem perder a jovialidade e a alegria que, às vezes, se assomava rutilante em seus olhos azuis! Crisoste gostava do Pedro, seu espírito alegre, ânimo bom. E o tinha em grande conta como cantador. Voz grave, afinada, cantava ou ajudava a cantar nas folias de Reis os temas específicos, nos botecos, modas de viola, com uma prosódia muito pessoal, mas, quem ligava? Só o Ivomar, parceiro eventual de cantoria do Pedro, que aparecia de vez em quando, de férias ou qualquer tipo de folga na faculdade de medicina onde estudava, em Ribeirão Preto. Encampava as “licenças poéticas” do cantador e assumia com gosto as distorções das letras naquela sempre deliciosa prosódia do Sudoeste de Minas, o Pedro na segunda, ele na primeira voz:

Eu nasci numa data feliz // bem dispois do dia dizessêss // por eu ser um menino sem pai // fui criado com o titio Inêss // O titio era cuiabano // no rejume eu tamém me criei // o titio, criador de gado // nessa lida eu tamém costumei // (....) // tinha laço, couro de mateiro, // c`on escapava uma rezz do mangueiro // eu deixava correr trinta dia por mêss // (...)

A indigência irremissível haveria de chegar com um cancro duro devastador. Nem tinha trinta anos quando, no cerne da sua virilidade, conheceu, sem as lembranças ternas da muito sábia Héloise, a miséria de Abelardo, outro Pedro (Pierre de Abélard), em Saint-Denis. Pleno de conformidade, disse ao médico que o atendeu depois que nada mais havia a ser feito:

 –  Então o jeito é morrer na pinga. 

Esse tipo de escolha não era de todo estranho naquele pequeno universo de garimpeiros, gente ligada à lavoura cafeeira, pequenos comerciantes, retireiros. Sufocado pelo remorso, remorso grande, de haver tomado parte na tocaia fatal contra um amigo que o tinha na maior confiança, Franquilim da Valdomira foi à cachaça com o mesmo afã que levou o Iscariotes à figueira, tendo sido acolhido com a mesma indiferença. Sempre fora gago, mas era conversador, sem se importar com as repetições exasperantes de sílabas e fonemas. Em seus últimos tempos, porém, só o que conseguia era balbuciar:

 – Me dá um go-golim.

Com o Pedro foi outra a história. Talvez porque não tivesse remorso pra carregar ele e a Pinga não se houveram assim tão mal e, por um bom tempo, foram levando a vida juntos. A Pinga não foi apressada com o Pedro, mas a alma da cana, espírito puro, eterno, não tem como perpetuar relação com um mortal, mesmo em se tratando de um homem bom. Chega a hora em que os prazos se esgotam.  Se a Pinga, ao menos, pudesse oferecer a Pedro Gonçalves da Costa a imortalidade, feito, a Odisseu, a ninfa Calipso! Não, não. Ele também recusaria. (nm)

 P.S. Neste 6 de janeiro, O&B deseja a todos um feliz Ano Todo. Sejam convosco os melhores influxos de Gaspar, Belchior e Baltazar. Amém.

quarta-feira, 29 de maio de 2024

O blefe do blefe


Muita petulância, hem?

O sujeito sapeava um carteado. O jogo? Truco. Começou a conjeturar a respeito e acabou em fatuidades. “Interessante. Não empata de jeito nenhum e ainda acha de desempatar muita mão de empenho! Diante de um três, de uma dama, de um valete de qualquer naipe, faz bela figura, embora, confrontado com qualquer outra manilha, empalideça e se apague. Mesmo em boa democracia, muita hierarquia. Pra carta, assim, limitada, a gente pode até achar que há uma certa arrogância no caráter do Sete de Ouros”. Continuou sapeando, mas distanciou-se do jogo: “Esse tipo de soberba não é raro entre as pessoas e expõe, tanto em jovens quanto em velhos, todo o ridículo do descuido com a vaidade; nas mulheres, sobretudo de insólita boniteza, manifesta-se mais como petulância, o que em nada as desmerece”.

De repete, a trucada ruidosa, escandalosa, como é de lei nesse jogo de muito barulho. E um blefe. O pensamento muda de direção, o sujeito dá-se conta de que aquilo atenta abertamente contra desígnios muito bem estabelecidos das cartas, que a gente que joga, supersticiosa, vê como entidades transcendentes, dotadas de vontade própria, sempre conspirando com dolo em desfavor de quem está perdendo. Daí as imprecações do tipo “desgraçado”, “baralho filho da mãe!”.

Mas tu podes fingir que as cartas te amam, pelo menos “daquela vez”; não estão em tua mão, mas finges que estão e pode ser que dê certo. Eis a suprema distorção do jogo e do Destino, da vida, em tudo diferente daquelas imanências que talvez possam ser inferidas de “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, o poema tipográfico de Stéphane Mallarmé (Un coup de dés jamais n'abolira le hasard). Capricho da sorte, do acaso, das cartas? Perdoem-nos Santo Agostinho, São Tomás, São Boaventura e quantos mais: não há transcendências nem imanências que resistam à esculhambação de um bom blefe. Isso não é simples: às vezes o jogador dá “pala” de que tem jogo quando realmente tem. E pode fingir que não tem, quando não tem nada mesmo. É tudo um embuste, cujo ponto mais alto seria o “blefe ao quadrado”, que Jorge Luis Borges refere no primoroso ensaio, “El truco”, em que conta de dois mascates, Mosche e Daniel, a cumprimentarem-se na metade da grande planície russa:

– Onde você vai, Daniel? – disse um. – A Sebastopol – disse o outro.

– Você mente, Daniel. Diz que vai a Sebastopol para que eu pense que vai para Nijni-Novgorod, mas você vai mesmo é pra Sebastopol.

Quando publicou isso, na década de trinta, não escondeu que se tratava de um velho motivo eslavo que, aqui, ganhou foros de original, replicado para favorecer a legenda dourada de Tancredo Neves, em campanha pra presidente. Inventar piada nova não é fácil. Desde os parlamentos do Império temos adaptações de chistes europeus: minas, ouro, diamante, sabe como é, atraíram muito cristão novo. Não é de estranhar, pois, a sombra mais ou menos recorrente de mosches e danieis em variações escorregadias no tema do mineirinho sabido. O deputado José Maria Alkmim, famoso em seu tempo, meados do Século XX, foi repetida presença nelas, Tancredo menos, mas teve seus momentos:

Na estação, cumprimentam-se dois políticos:

– Vai pra Ponte Nova, doutor Tancredo?

 –  Não, pra Muriaé.

–  Ummm! ...pra Muriaé, pra eu pensar que vai pra Ponte Nova, mas é pra Muriaé que vai.

Ô, Borges! Se isso não é o blefe do blefe!

(nm)

(XIX)

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quarta-feira, 22 de maio de 2024

Arribação

(XVIII)

Esplêndido abril, os frios primeiros. Sete pássaros vermelhos, sete flechas de fogo riscando o céu alto, voam, voam decididos, velozes, sem deixar rastro no azul: rumam alegres, algum até canta, para estações mornas do Norte. É assim mesmo, é sempre assim, ao pressentirem a hora de ir embora todos partem, simplesmente partem, sem vacilar, pássaros, borboletas, lambaris....

A friagem... ah! a friagem! Um arrepio, o sujeito começa a congelar. Melhor é se lançar logo na arribada, ir-se depressa, pra longe, bem longe. Mas o frio tremendo, dentro, irá junto, certamente, a geada se espalhando, se expandindo, a infiltrar-se por todos os recônditos, por toda parte inverno atroz brrrr!!!  o ano inteiro, a vida inteira. Então, minha amiga, ir embora pra onde? (nm)

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quarta-feira, 8 de maio de 2024

Lembranças da Lua e do poço

 (XVII)

                                       

         Siete Léguas, metade tordilha

              do centauro Pancho Villa




 Chakmol clareou com um pouco de luz da Lua o fundo misterioso do cenote para revelar a arca de lembranças que a água escondia no mais escuro do poço. Dentro, quinquilharias, fragmentos desconexos, cacos de memória que apenas a sonoridade incomparável de um pequeno tesouro de palavras impronunciáveis faz cintilar: Teotihuacan, onde os deuses se reuniram antes da Criação, Tenochtitlán, Chichen Itza, Huitzilopochtli, Queatzacoatl, Kukulcán... Às vezes, ecos imprecisos, Miguel Angel Astúrias, Gorostiza, Octavio Paz, a Mariposa de Obsidiana: Canta en la verde espesura // la luz de garganta dorada, // la luz, la luz decapitada. Vibração suave de muitas rosas, azuis,  as estrelas, pálidas: Sor Juana Inés de la Cruz: 

............Goza, sin temor del Hado,
el curso breve de tu edad lozana,
pues no podrá la muerte de mañana
quitarte lo que hubieres hoy gozado;

(...)

no sientas el morir tan bella y moza:
mira que la experiencia te aconseja
que es fortuna morirte siendo hermosa                                                               
y no ver el ultraje de ser vieja.

Hernan Cortez, Malinche, Guatemoc, Miguel Hidalgo, Maximiliano, Benito Juarez. Zacatecas, Torreón, Parral, Chihuahua, Morelos, Oaxaca... Pancho, Tomás Urbina, Panfilo Natera...  Emiliano Zapata, Francisco Madero, Pascual Orozco, Álvaro Obregon, Venustiano Carranza, Enrique Flores Magón, seu irmão Ricardo... Então um ditador velho vira frase, uma única frase, e nela sobrevive até hoje. Que metamorfose! 

"general-porfirio-dias-pobre-méxico-tão longe-de-

deus-tão perto-dos-estados unidos"

Tanto pelear y pelear... Mire usted, mi general, yo que fui un hombre valiente (...) quiero que usted me afusile en público de la gente, ”mañanas” tristes de Benjamin Argumedo; Mariachi Vargas de Tecalitlan, La Adelita, outra Adelita, todas as Adelitas; “Con las barbas de Carranza, voy hacer una toquilla, pa ponerle en el sombrero, del señor Francisco Villa // La cucaracha ya no puede caminhar...” Mas “o petróleo é nosso”, hem, presidente Lázaro Cárdenas!

Maria Felix, Maria Bonita, Maria del Alma, versos de Agustin, voz de Jorge Negrete. José Alfredo Jimenez propõe “adiar el olvido al estilo Jalisco”, mas esses modos “tapatios” de procrastinar esquecimento são um tremendo enigma, não são?  Frida Kahlo, Leon Trotsky, Diego Rivera, Siqueiros, Cantinflas, La Teibolera Lila Dawns, som de jade e prata:  Cantame Tacha, una rancherita de esas bonitas, de esas que a un hombre lo hacen llorar...

Chiapas outra vez, o Subcomandante Marcos, outra vez Zapata!

Celebrar o agave, o henequén. Tequila, a tequila... É de bom alvedrio levar em conta a liturgia do destilado, seu ritual: canção de Cuco Sanchez sugere “una pura y dos con sal”. Brindemos: “Arriba, abajo, al centro, pa dentro.” Vale! E cantemos: Volaron los pavorreales rumbo a la Sierra Mojada. // Mataron a Lúcio Vazquez...

Amado Nervo celebra grandíssimo amor no poema que virou tango:

El día que me quieras tendrá más luz que junio;
la noche que me quieras será de plenilunio,
(...)
Las fuentes cristalinas
irán por las laderas
saltando cristalinas
el día que me quieras.

El día que me quieras, los sotos escondidos
resonarán arpegios nunca jamás oídos.
(...)
El día que me quieras, para nosotros dos
cabrá en un solo beso la beatitud de Dios
. (nm)

Teotihuacan, Tenochtitlán, Chichen Itza, Huitzilopochtli, Queatzacoatl, Kukulcán...

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quarta-feira, 1 de maio de 2024

Nas voltas do Mundo, o sempre possível reencontro

(XVI)
Adrasto, Polinice, Tideu, Anfiarau, Capaneu, Partenopeu e Hipomedonte, os sete contra Tebas e o usurpado poder de Etéocles. Podiam ter sido oito, seis, ou quantos fossem. Mas na conta dos cantores dos feitos dos guerreiros de Argos – Ésquilo o confirma – sete chefes ergueram suas lanças contra as muralhas de Tebas, um para cada porta da cidade: na sétima, irmão contra irmão.

Não venceram, mas assim é a guerra e, de qualquer modo, vitória é flor que murcha e seca muito depressa: só do lutar a flor não cessa. Epígonos assediaram com sucesso as mesmas pedras, pagando tributo oneroso ao impiedoso Ares. Duas gerações de argivos contra orgulhosos tebanos provaram só que Alegria não faz séquito à Glória: lutar, lutar, sempre lutar. Vencer, às vezes vencer, depois chorar.


Samurais e caubóis

Sete também são os samurais (Shichinin No Samurai) de Akira Kurosawa, mas quem, entre tanto japonês, lembrar-se-ia de seus nomes complicados, à exceção, talvez, de Toshiro Mifune? Se o filme, belíssimo, replica no Oriente ritmos e padrões de composição e imagem que Kurosawa sempre admirou nas obras de John Ford e John Houston, outro John (Sturges), fez a tréplica, transpondo de novo para o Ocidente, mais precisamente para um cenário mexicano de western, a saga dos guerreiros japoneses no inesquecível épico Sete Homens e um Destino. Em seu filme, Yul Brynner, James Coburn, Steve McQueen, Robert Vaughn, Charles Bronson, Horst Buchhole, Brad Dexter.

É como se esse filme realizasse a metáfora de Ouroboros mordendo a própria cauda, numa exaltação lírica da ideia de infinitude. O círculo posto em movimento confunde convenções precárias, fátuas noções de limites: onde termina o Ocidente, onde o Oriente principia, se toda hora é a hora do Ocaso e, afinal, não é Aurora cada hora? O entrelaçamento de culturas é como uma imensa brincadeira de roda em que homens e mulheres, enquanto vão girando, girando, produzem reverberações luminosas que catalisam as possibilidades mais furtivas do sem fim.

Como a Quetzacoatl dos Toltecas e dos Maias, o Midgardsormr dos Vikings, Vritra, do Mahabarata, a Hidra dos cantos homéricos, o Leviatã do Livro de Isaías, ou como quer que se queira chamá-la, a Grande Serpente que fecunda a aurora dos tempos e inaugura a História espoja-se em seu leito de espumas no Mar Imenso. Ela recebe, como piedosa oferenda, colar tão brilhante quanto o Brisingamen que enfeita o colo da recatada Freya e compraz-se em seu esplendor. Meio-Dia e Setentrião confundem-se nas grandes águas, também o Leste e o Oeste; os Tempos encontram-se em arrebatados instantes, perturbando as noções intrinsecamente vagas do princípio e do fim. No que concerne a ovo e galinha, ocioso é indagar precedência, como talvez já tenha advertido Zaratustra. (nm)

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quarta-feira, 24 de abril de 2024

Asas de caravelas, brancas asas de Portugal

 (XV)

De corda e pau é o berimbau.

O mar azul é de água e sal.

As armas e os barões assinalados // Que, da Ocidental praia lusitana... vão abrindo iluminadas rotas na vastidão salobra para quem queira fruir da aventura incomparável dos homens a vela: Bartolomeu Dias, Diogo Cão, Albuquerque, Vasco da Gama, Fernão de Magalhães, Pedro Álvares Cabral, e daquele Dom Henrique, Infante, que, sem nunca ter partido, chegou antes. Herdeiro de orientais arcanos, em portulanos obscuros, de ânsias, delírios, sonhos, e das chaves do Oceano, cujas portas, ao futuro, uma a uma foi abrindo, enquanto ia sonhando os seus sonhos de menino. Depois de contemplar, quedo, a vastidão das estrelas, achou que era pequeno o mar – uma tina de madeira – um sonho, então, de caravelas, tirou do baú da infância e, nos Sete Mares, a instância, foi pô-las a navegar. Bojador, Adamastor, Malaca, Calecut, Cipango, Curaçao, Macau, Timor, Bahia de Todos os Santos... Ó mar amargo de Pessoa, ó doce mar de Dorival!

As suas velas de sonho deram asas a Portugal, para que voasse, voasse muito, a todos os muito longe. Mas, o Infante chegou primeiro, chegou antes.


Todos os mares

As estrelas da Grande Ursa, em número de sete, traem abismo e vertigem que o Escorpião, com seus sete luzeiros, sobreleva contra transparências suaves de um outubro cada vez mais longínquo. Sete Mares de Fernão de Magalhães, águas imprecisas do ardiloso Odisseu, de Simbad, o Marinheiro, e daquele Sandokan que, da Sumatra aos mares da China, conduzia a mais feroz abordagem por rotas delirantes de Emílio Salgari, e a mais leal. Águas do capitão Ahab, Cetáceo Império de Moby Dick, ou do próprio Herman Melville, não sei! Certezas que só podem ser encontradas nos primeiros livros mostram-nas enfarruscadas, tintas às vezes do rubro que esguicha direto das fontes de armas brancas, exultando heroísmos que não poderiam fluir senão na geografia vaga da infância.

A alegria de descobrir desconcertantes vastidões torna verossímeis impossíveis batalhas no esplendor do mar. E histórias de tesouros que piratas enterraram em misteriosas ilhas de Robert Louis Stevenson, referências luminosas como as geladas torres do Himalaia, ou as do branco Aconcágua  recortadas contra esplendente azul, tão gratas quanto o eco da voz materna contando histórias, de Flor Encarnada, da Moura Torta, do Pequeno Polegar...  sempre com intuito de acalanto. (nm)

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quinta-feira, 18 de abril de 2024

Roma, colinas e reis

(XIV)

S
ete as colinas encantadas, Palatino, Quirinal, Aventino, Monte Célio, Viminal, Capitólio e Esquilino, e sete os reis que fundaram a cidade e seu império, Rômulo, Numa Pompílio, Tulo Hostílio, Anco Márcio, Sérvio Túlio, os dois Tarqüinios, Prisco, um, pela ordem, o outro, Soberbo. Coincidência? Talvez, ou capricho de nume antigo, sete ondulações telúricas sobre as quais, soberanamente, desde a dourada era de Saturno reinaram reis em número de sete, como em conjunção de astros dispostos em heptâmetros mágicos: Quem os terá composto, se Ovídio, e o Quinto Horácio Flaco, e Marcial, Lucrécio, Propércio, Lucano, Virgílio Maro... fazem parte da estância?
  

Passear por Roma é muito bom

As Sete Colinas de Roma”, 1957. O roteiro do filme parece ter saído das pranchetas de uma agência de turismo e, sem maiores preâmbulos, põe a gente a passear entre monumentos e paisagens romanos. Tem Mário Lanza com todo o seu prestígio de tenor num clima de romance com Marisa Allasio. O dueto à beira da fonte com Luisa di Meo, então uma garotinha, até hoje emociona. Canção de Renato Ascel: 

Che arrivi, t'imbevi
De Fori e de scavi,
Poi tutto d'un colpo
Te trovi Fontana de
Trevi tutta pe' te!

Arrivederci, Roma...
Good bye...
Au revoir...

Si ritrova a pranzo a
Squarciarelli
Fettuccine e vino dei
Castelli come ai tempi
Belli che Pinelli immortalò!

Outros filmes, americanos e italianos, haviam antecipado a fórmula. Assim, “A Princesa e o Plebeu” (Roman Holliday) de 1953, em que a pé, de carro ou de lambreta, o público vai atrás de Gregory Peck e Audrey Hepburn. O “Candelabro Italiano”, na década de 60, Troy Donahue e Suzane Pleshette, seguiu a toada, tem até lambreta. Porém trouxe Al di lá, no vozeirão impostado de Emilio Periccoli. Em todos, postais e mais postais, no que Roma é incomparável: Basílica de São Pedro, Piettà, Capela Sistina, a sombra do papa Júlio II, a aura de Michelangelo; San Pietro in Vinculi e o “Moisés” que o artista esculpiu, com aqueles misteriosos cornos e tudo; Castelo de Santo Angelo, o mercado dei Campo de` Fiori e, claro, o Coliseu, o Forum Romano, o Arco de Tito, o Templo de Vênus, a Basílica de Maxêncio, o Templo de Vesta...  

Sem Fossas Ardeatinas, que o horror da Grande Guerra estava presente demais, mas, sempre, as Termas de Caracala, o Palatino, e o Campidoglio, com vista direta para o Trastevere e, claro, para o próprio Tibre, Isola Tiberina, inclusa, mais a brancura do mármore no monumento a Vitorio Emanuele II, lá no alto; Piazza Navona, Piazza di Spagna, as escadarias de Trinità dei Monti, a Via dei Condotti, quanta grife, meu deus do céu, os preços, nos últimos degraus! Rente às escadarias, o Museu Keats-Shelley, que guarda memórias dos dois grandes poetas românticos no endereço em que buscaram refúgio, em vão, contra a tísica, no clima ameno da Itália.

A evocação de Roma traz muita referência, umas de puro afeto, outras nem tanto: Malaparte, Malatesta, Palmiro Togliatti, Don Camilo, Pepone, Vittorio de Sica, bicicletas, Bernardo Bertolucci, Rita Pavoni, datemi un martelo // Che cosa ne vuoi fare? // Lo voglio dare in testa, sim! E Fellini, Oito e Meio e Amarcord, La Dolce Vita (À meia-noite, com Anita Ekberg dentro, é quando mais bonita é a Fontana de Trevi), Modugno, Cos`è che trema sul tuo visino. // È pioggia o pianto, Dimmi cos` è, // Ciao ciao bambina // Non ti voltare, non posso dirti rimani ancor.// Vorrei trovare parole nuove, ma piove, piove...

“Cidade Aberta” é a Roma de Roberto Rosselini e de Ana Magnani, dela, também, a “Mamma Roma” de Pasolini, que recria na cena urbana, em tomadas emocionantes, sugestões de afrescos de Giotto, Caravaggio, Tintoretto... A Cidade comporta esse tipo de capricho, deixando sublimar com naturalidade séculos e séculos de história e arte, em projeções luminosas nas telas dos cinemas do mundo inteiro. Esses filmes dão a impressão de não buscarem revelar seus mistérios e segredos, talvez para não compartilhar com não iniciados, só deixar rolar:  inverno, as sombras da guerra presentes na noite espessa, dissimulando o indecifrável. (nm)

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quarta-feira, 3 de abril de 2024

Do Livro das Revelações



Em "O Sétimo Selo", 

o cavaleiro cruzado

de Bergman

(Max Von Sydow)

e a Morte

(Bengt Ekerot),

que joga com as pretas 

(XIII)

Sete espíritos, sete castiçais de ouro, entre os quais, voz de muitas águas.  Sete estrelas à destra, e as chaves da morte e do inferno (1): Ao que vencer, dar-lhe-ei a comer da Árvore da Vida, diz a voz de muitas águas. Um livro escrito por dentro e por fora, selado com sete selos, que um Leão, dos filhos de Judá, com sete pontas e sete olhos, os sete espíritos de Deus, é digno de abrir.

Aberto o primeiro selo, saiu um cavalo branco, cujo cavaleiro tinha um arco e foi-lhe dada uma coroa; e saiu para vencer; o segundo, e saiu um cavalo vermelho, a cujo gi­nete foi dado tirar a paz da terra; o terceiro, e saiu um cavalo preto, e seu ginete levava uma balança: uma medida de trigo por um dinheiro três de cevada por um dinheiro; o quarto selo, e saiu um cavalo amarelo, e seu cavaleiro tinha por nome Morte, e o inferno o seguia... (Gracia - Los Cuatro Jinetes - Blasco Ibañez) 

Aberto o quinto selo, viu-se sob o altar as almas dos que morreram por amor à Palavra; o sexto, e veio um grande tremor de terra, o sol tornou-se negro e a lua como san­gue. Estrelas caíram sobre a terra. E o céu retirou-se, como um livro que se enrola; reis da terra, e os grandes, ricos e os poderosos diziam às pedras das montanhas: Caí sobre nós, escondei-nos do rosto daquele sobre o trono, porque é vindo o grande dia de sua ira.

Aberto o sétimo selo, fez-se silêncio no céu por meia hora. (A percepção desse silêncio opõe o Cavaleiro de Ingmar Bergman à Morte, num jogo e xadrez em que não pode evitar o xeque mate. A questão é: Quando? Enquanto isso, a agônica espera do nada vai adensando, no filme inesquecível, a ideia do Absoluto.)

Sete anjos, diante de Deus, aos quais foram dadas sete trombetas. O primeiro tocou e houve saraiva e fogo com sangue, lançados sobre a terra, queimando sua terça parte; tocou o segundo e foi lançado ao mar algo como um monte ardente, e tornou-se em sangue a terça parte do mar.

O terceiro anjo tocou e caiu do céu uma grande estrela ar­dente sobre a terça parte dos rios e fontes. E o nome da es­trela era Absinto e terça parte das águas tornou-se absinto; o quarto, e foi ferida a terça parte do sol, da lua e das estrelas, para que sua terça parte escurecesse, e a terça parte do dia.

O quinto anjo tocou a trombeta e uma estrela do céu caiu na terra; e foi-lhe dada a chave do poço do abismo. Gafanhotos como escorpiões fustigaram a terra por cinco meses. E ti­nham sobre si o anjo do abismo, cujo nome em hebraico era Abadom, e em grego Apoliom.

O soar da sexta trombeta soltou quatro anjos que esta­vam presos junto ao rio Eufrates, para que matassem um terço dos homens; ouvi as vozes dos sete trovões, mas uma voz mandou: Sela o que os sete trovões falaram, e não escreva. Mas nos dias da voz do sétimo anjo, quando tocar a sua trombeta, se cumprirá o segredo de Deus.

A voz disse: Toma o livro na mão do anjo, come-o e ele fará amargo o teu ventre, mas na tua boca será doce como mel. E viu-se outro sinal no céu, um grande dragão vermelho que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre suas cabe­ças, sete diademas. Do mar subiu uma besta que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre seus chifres dez diademas, e sobre as suas cabeças um nome de blasfêmia.

E adoraram o dragão que deu à besta o seu poder. E foi-lhe permitido fazer guerra aos santos, e vencê-los. Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento, calcule o número da besta; porque é o número de um homem; e o seu número é seiscentos e sessenta e seis.

E o anjo vindimou a foice as uvas da vinha da terra, e lançou-as no lagar da ira de Deus. Aos sete anjos foram dadas sete taças cheias da ira de Deus. Uma grande voz dizia: ide e derramai sobre a terra as sete taças.

Eu te direi o mistério da besta de sete cabeças e dez chifres que traz a mulher...  As sete cabeças são sete montes, sobre os quais a mulher está assentada, (nm)

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quarta-feira, 27 de março de 2024

Do conto do Pequeno Polegar





Gigante espoliado
das botas de sete léguas.
Que triste semblante!


(XII)


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quarta-feira, 20 de março de 2024

Da história da Branca de Neve

 (XI)

Anões

Um, dois, três, Dunga, Mestre, Atchim. Quatro, cinco, Dengoso e Soneca, seis e sete, Zangado e Feliz, o mais difícil de lembrar, nem Branca de Neve saberia por que. Talvez a bruxa má:  – Felicidade é ausência de dor, negação, portanto, e suas pegadas apagam-se nas praias da memória, afeitas mais às impressões positivas do que dói.

Deu uma gargalhada de bruxa e continuou: – Às vezes ocorre latejar na lembrança a negação de uma ausência, nostalgia, a “dor do regresso”, “dor do lar”, invenção de gregos, tão propensos, sempre, a sofismar. Dialeticamente, porém, a negação do ausente é positiva, saudade, lusitanamente, – irrrque! que voz!

– Então dói! – gritou a bruxa com autoridade maligna. Outra gargalhada, dessas de gorar as ninhadas, e embrenhou-se na espessura, desafinada, a resmungar: “Um, dois, três, Dunga, Mestre e Atchim. Quatro, cinco, Dengoso e Soneca, seis, sete, Zangado e Feliz, difícil de lembrar”. (nm)

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