segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Do tempo das coisas e dos homens

Ocioso e gratuito é dizer que o Eclesiastes é o texto mais citado, mencionado, referido, glosado, parafraseado etc. Mas essa é uma idéia que ocorre quando  a gente recebe algo como a “canzone meravigliosa” enviada pelo  ítalo-mineiro Fernando Fabbrini: “C`era un tempo”, de Ivano Fossati, a letra mais o enlace pra gente ouvir na voz do próprio autor.  “Tutto meraviglia”.

É uma cifra do Tempo, aquela história de um tempo pra plantar, um pra colher, um de chorar outro de rir, um tempo de edificar outro de destruir, por aí afora. Não dá pra gente saber se o tempo é o algoz do homem ou se, ao fim e ao cabo, o que o liberta, posto que, implacável, sobrepõe-se à vida e a todas as misérias da condição humana. Mas o autor do texto original, Eclasiastes, Pregador, ou Qohélet, na Tradição, deixou envolto em poéticas brumas apenas os tempos intermédios, muitas dúvidas. Seria o mesmo rei Salomão, filho de David, construtor do Templo, sábio amante da inefável Belquis, glória dos femininos reinos e, de todas as Abissínias, eternamente rainha.

No tálamo dourado do grande rei, ardor e langor da África, fulgentes tetas, o grato negror, tons e brilho da turmalina que, mesmo quando não excede em tamanho um grão miúdo de café, pode guardar muitos mistérios da noite. Brandas almofadas, tapetes da Babilônia, algodão do Egito; linho, lãs da Caxemira, seda de Samarcanda, muita seda...  E essências do Oriente, cravo, jasmim, mirra, incenso, benjoim...

Em tempo de triunfo assim, nem o filho de Davi haveria mesmo de acreditar no fim. Tempo de triunfo é só um átimo, um momento, um sopro, impossível, embora, de esquecer, e o rei Salomão, jamais, nunca esqueceu Belquis. “À égua do carro de Faraó te comparo, minha amada”, a lembrança dela tocando-lhe a pele e o espírito, feito a sombra da Águia do Destino que , capricho do Sol da África, vagueia sobre os vales crestados
enquanto, poderosa, a ave perscruta a glória, as agruras, vicissitudes, da Etiópia.

Mas o tempo é um, é dois, é três, feito as maçãs que um menino fanho vendia numa esquina do Centro de BH, ou de Bagdad, não me lembro, é múltiplo, vário, tempo a montante da ponte, a jusante do amanhecer, ao Sul das minas de Minas, ao Norte da Lua Nova, e além, muito além, da Grande Ursa e da Polar Estrela, Aldebarã mirando distraída, tempo de gafanhoto estrábico, do mico-leão dourado, da branca pomba indo embora, muita andorinha no céu.

E, no entanto, de mansinho, feito uma silenciosa mariposa, ou ex-abrupto, chega o tempo de morrer. Não liga não, pior é o tempo do espanto e o da desolação, o Tempo do Medo e da Tristeza, que a gente festeja enquanto não chega. Regozijemo-nos, rejubilemo-nos, abramos ao gáudio e à alegria as portas e janelas de nossas casas e a do coração e, como em antiga canção piedosa, “cantemos ao amor dos amores”, enquanto não se esgota “o tempo que sobre a Terra nos foi concedido” a que se refere Brecht no poema “Aos que virão depois de nós”.

E quando “A Última passar com seu facão”, é sorrir para ela,  acolhê-la como a anunciadora do Tempo do Esquecimento, deixar-se tocar pela lembrança de Belquis a assombrar o espírito feito assombra os vales e montes sabeus a sombra da Águia do Destino. E esquecer vinganças, remorsos, a roseira e os espinhos, as pedras do caminho, e até mesmo – Que pena! aqueles versos de Neruda, tão doídos, os de Dario, som de águas altas, cristalino fulgor...  E sorrir e deixar levar. (NM)

Agora, a  “canzone meravigliosa” que o Fabbrini mandou:

"C'era un tempo"

Ivano Fossati

Dicono che c'è un tempo per seminare
e uno che hai voglia ad aspettare
un tempo sognato che viene di notte
e un altro di giorno teso
come un lino a sventolare.

C'è un tempo negato e uno segreto
un tempo distante che è roba degli altri
un momento che era meglio partire
e quella volta che noi due era meglio parlarci.

C'è un tempo perfetto per fare silenzio
guardare il passaggio del sole d'estate
e saper raccontare ai nostri bambini quando
è l'ora muta delle fate.

C'è un giorno che ci siamo perduti
come smarrire un anello in un prato
e c'era tutto un programma futuro
che non abbiamo avverato.

È tempo che sfugge, niente paura
che prima o poi ci riprende
perché c'è tempo, c'è tempo c'è tempo, c'è tempo
per questo mare infinito di gente.

Dio, è proprio tanto che piove
e da un anno non torno
da mezz'ora sono qui arruffato
dentro una sala d'aspetto
di un tram che non viene
non essere gelosa di me
della mia vita
non essere gelosa di me
non essere mai gelosa di me.

C'è un tempo d'aspetto come dicevo
qualcosa di buono che verrà
un attimo fotografato, dipinto, segnato
e quello dopo perduto via
senza nemmeno voler sapere come sarebbe stata
la sua fotografia.

C'è un tempo bellissimo tutto sudato
una stagione ribelle
l'istante in cui scocca l'unica freccia
che arriva alla volta celeste
e trafigge le stelle
è un giorno che tutta la gente
si tende la mano
è il medesimo istante per tutti l'istante in cui scocca l'unica freccia
che arriva alla volta celeste
e trafigge le stelle
è un giorno che tutta la gente
si tende la mano
è il medesimo istante per tutti
che sarà benedetto, io credo
da molto lontano
è il tempo che è finalmente
o quando ci si capisce
un tempo in cui mi vedrai
accanto a te nuovamente
mano alla mano
che buffi saremo
se non ci avranno nemmeno
avvisato.

Dicono che c'è un tempo per seminare
e uno più lungo per aspettare
io dico che c'era un tempo sognato
che bisognava sognare.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Em Santa Tereza, cerveja

Dia desses, encontrei-me na fila de autógrafos do livro “Bandeiras de Minas”, dos jornalistas Airton Guimarães e Taquinho, com a também jornalista Eliza Peixoto, que não via há muitos anos. Pedi-lhe um endereço eletrônico que pudesse agregar à lista de contatos deste O&B, que ela passou-me protamente, com o do sítio “Santa Tereza Tem” (www.santaterezatem.com.br a que vem se dedicando com energia e sensibilidade. O sítio oferece história, histórias, tradição, arte, comércio, restaurantes, festejos, carnavalescos inclusive, tudo de bom, enfim, que a gente pode encontrar no velho e charmoso bairro  da região Leste de BH. E, assim, em águas virtuais navegar, navegar, navegar por Santé, nela passear.

Agora o seguinte: pra tomar uma cerveja e saborear ricos tira-gostos em bares como o “Temático”, por exemplo, o jeito é comparecer  pessoalmente. Para um blogueiro mais ou menos incrustado no burburinho da Savassi, se for em companhia, fidalga e sempre amiga, boa companhia, Luiz Fernando Perez, Perão,  Danilo Andrade, Ivan Drummond,  Wanderley Panther,  Cristina Crocco, da Tecris, Marina, gente do bairro ou aficionados irredutívels de Santé, é muito melhor.

(NM) 


A foto do “Temático” é do Toninho Almada

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Em frente à Biblioteca, Quatro Cavaleiros

Foi muito celebrada a passagem, em outubro, dos 90 anos de nascimento do escritor Fernando Sabino, autor do sempre celebrado “Encontro Marcado”. A badalação apenas tornou inevitável a foto dos “Quatro Cavaleiros do Apocalipse”, Sabino, Otto Lara, Pellegrino e Paulo Mendes Campos, figurados em bronze em frente à Biblioteca Pública, em BH. É coisa recente, pois o grupo de estátuas esteve, antes, no pequeno jardim implantado no pátio da antiga Secretaria de Educação, dando acesso, sob o anexo da Biblioteca, da Rua da Bahia para a Praça da Liberdade. Sabino e Otto estão sentados num banco dos mais prosaicos, Pellegrino e Paulo Mendes Campos estão de pé.

Os quatro merecem o reconhecimento e a simpática homenagem, mas aquelas  estátuas  se salvam mais pela interação cordial entre elas, que acaba envolvendo os curiosos que se aproximem. Figuras assim, acadêmicas, podem parecer anacrônicas na cidade de Alfredo Ceschiatti. É o mesmo caso dos bronzes de Pedro Nava e Carlos Drummond na pracinha à sombra art-déco do velho Teatro Municipal, atualmente uma agência enorme do Bradesco. Como as Roberto Drummond e da poeta Henriqueta Lisboa, na Savassi, as estátuas sugerem reproduções de photoshop. É tudo muito bom, detalhadinho,  à vontade, natural, mas é no detalhe que resvalam no kitsch. Como no fox de Mário Lago / Orlando Silva, o livrinho que cada uma carrega “é demais para o meu coração”.

Parece que estamos diante de uma fórmula inspirada na estátua de Fernando Pessoa em frente à “Brasileira”, em Lisboa, monumento de passado um pouco mais pretérito. Como arte de estatuária, o busto do escritor  Bernardo Guimarães (Escrava Isaura, O Garimpeiro, O Elixir do Pajé,êpa! ) que também tem sua herma na Praça da Liberdade há mais tempo, é muito mais expressivo. As novas composições, porém, com livrinho e tudo, têm sua eficácia, sobretudo junto às crianças, talvez pela encenação algo naïf,  que lhes permite, e também a adultos de espírito mais lúdico, inventar brincadeiras e formas de interagir com as estátuas.
Em manhã clara de domingo, blogueiro ocioso se intruja na placidez nada apocalíptica dos insólitos cavaleiros, em sua presumível conversa fiada, mas não dá palpite, fica só assuntando. Uma garotinha que passava no momento da foto apontou com o dedo e perguntou à jovem mulher que lhe segurava a outra mão, “Mamãe, o quê que é isso?”.
Com essa indagação veio à lembrança o refrão do Caxangá, cantador e repentista que manteve, nos anos 70 e 80, programa de cantoria de muita audiência na Rádio Itatiaia, aqui mesmo e BH: “Eu vi um nêgo sentado // no bueiro da osina, //  de chapéu de panamá, de casaca e de botina. “ Não há “osina” nem bueiro, casaca e botina também não há, só um neguim sentado. E o chapéu de panamá.

Não é o caso ser rebarbativo. É bom lembrar e celebrar  nossos artistas e heróis. Heróis? Vamos tentar esquecer o Tiradentes de bronze do cruzamento das avenidas Brasil e Afonso Pena, que mais parece um Rasputin de filme “c”, a túnica horrorosa de condenado, crucifixo preso à cintura para consolar sua fé na hora patibular, as barbas enormes, aquela corda no pescoço de quem se dirige à forca devidamente equipado... Ao “artista” que realizou o monumento, ou a quem o encomendou, não ocorreu representar o herói da Inconfidência na gala de sua juventude de alferes, de preferência montado em cavalo bom. Optou-se pelo patético. Quê fazer?

Paulo Mendes Campos, a vida, a Parca, Alice

Uma vez o Roberto Drummond, que tinha na mais alta conta a literatura de Fernando Sabino, tentou convencer-me de que o “Encontro Marcado” era uma obra essencial, para ser lida por todo brasileiro alfabetizado. Foi numa noite, na redação de jornal em que ambos trabalhávamos. Ele me apresentou Geraldo Boi, o tipo bizarro que teria inspirado o protagonista de “O Grande Mentecapto”. A figura não me causou a menor impressão, e jamais li livro algum de Fernando Sabino.

Daqueles “Quatro Cavaleiros do Apocalipse”, a memória afetiva de leitor só guardou registro de Paulo Mendes Campos, iluminado nas tertúlias dominicais do Tip Top por Carlos Alberto de Barros Santos, que teve trato e convívio com o grande cronista, e autoridade para, em mais de uma ocasião, falar com entusiasmo da sua arte de escrever, que  tangenciava as estrelas, de tão alta! Uma ou outra vez mencionou aspectos mais atribulados da vida do escritor,  a alma atormentada por demônios que jamais conseguiu exorcismar. Tão afetuoso e reverente era o tom dessas referências que todos os que pudemos desfrutá-las, de um modo ou de outro, nos deixávamos impregnar do mesmo afeto. Do Otto Lara, alguma pala dessas que, de vez em quando, alguém repete: “Mineiro só é solidário no câncer”; de Pellegrino, nada. Para a geração que veio “Caminhando contra o vento, // sem lenço e sem documento”, isso tudo estava distante demais.

Depois de um domingo dos domingos do Tip Top, Carlos Alberto mandou-me uma carta em que relatava o ultimo encontro que teve, aqui mesmo em BH, com Paulo Mendes Campos. Foi em agosto de 2008 e, então, O&B nem existia. Em 2010, já com o blogue na rede, perguntei-lhe se podia postá-la e ele aquiesceu, mas, com modéstia, disse tratar-se não de uma crônica sobre o cronista, mas de um bilhete para encaminhar-me a belíssima paráfrase que PMC fez de Lewis Carroll em “Para Maria da Graça”. E fez outra ressalva: “O Paulo foi descrito no texto na fase outonal da vida. Sempre foi amigo do copo, mas a amargura de que falo surgiu por volta da última década. Antes era alegre, botafoguense fanático, jogava futebol de praia e era um grande papo e companheiro de mesa...”
(NM)

A carta do Carlos Alberto

“Querido amigo,

O Paulo Mendes Campos, estranho, controvertido, muitas vezes ingênuo, puro, gentil e sempre esquivo, mesmo celebrado pelos notáveis do seu ramo, era uma figura, dessas para se guardar para sempre e morrer sem saber interpretar. Profundamente culto, fazia a maior força para dissimular essa condição. Não, ele não sabia nada, era um observador da vida. É o que dizia entre duas doses de uísque, que adorava, ou duas batidas de limão com pinga, que bebia para se embriagar.

Conheci-o muito e tornamo-nos amigos. No Rio, nossos apartamentos eram próximos e freqüentes nossos encontros em botequins das redondezas. Só que, nos últimos anos, nenhum botequim da Zona Sul o aceitava. Ele bebia e brigava com os garçons, o gerente e quem mais se metesse na confusão. Quase sempre por questões frívolas. Que coisa estranha, que coisa triste num homem daquela altitude, num grande poeta! Cheguei a vê-lo praticamente atirado à rua por seguranças truculentos e sem a menor paciência, e recompor-se para afetar a dignidade possível, nas circunstâncias, mas era uma dignidade  cambaleante, fingida, chapliniana. Assisti a isso duas vezes e me doeu muito.

Em Belo Horizonte ele me telefonou. Aonde poderíamos tomar um chope? Sugeri o Primo e ele foi. Como o marinheiro do poema bandeiriano, estava triste e lúcido. Não quis beber. Falou-me de coisas circunstanciais, de algumas memórias, tudo muito sem graça, em voz baixa, bebendo água tônica. Ao final perguntou:
- Pode me deixar em casa?
- Claro.

Deixei-o na casa do pai, na Avenida Getúlio Vargas quase esquina com Contorno. Uma casa velha, velhíssima, onde morou sua família, seu pai, meu professor, há pouco falecido. Deixei-o em frente e, pelo retrovisor do carro, vi que ficou parado na calçada. Esperando o quê? – perguntei-me. Não sei, não posso dizer, mas acho que ele já estava esperando a morte. Acho que estava morrendo aos pouquinhos. Acho...

Dois meses depois fui colocar minhas mãos sobre as dele, geladas, dentro de um esquife trasladado para a cidade de onde saiu para um mundo que foi, a um tempo a glória e a tragédia da sua vida. Hoje, acho que não seria leviandade afirmar que o Paulo, viajor incansável, nunca deveria ter empreendido qualquer viagem para além de sua própria interioridade. O seu mundo.

Era um grande cronista, talvez, não sei, melhor do que poeta. O mais provável é que, nele, os dois gêneros se confundem, ou se completem. O exemplo que lhe envio é baseado na obra-prima de Lewis Carroll. Mas é também um texto para nós, bem mais velhos, para os homens de todos os tempos.

Carlos Alberto”

PARA MARIA DA GRAÇA

Paulo Mendes Campos

Agora que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.
Este livro é doido, Maria: o sentido dele está em ti.
Escuta: se não descobrires um sentido na loucura, acabarás louca. 
Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. 
Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.
A realidade, Maria, é louca.
Nem o Papa, ninguém no mundo pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz a sua gatinha: “Fala a verdade Dinah, já comeste um morcego?”
Não te espanes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isto acontece muitas vezes por ano. “Quem sou eu no mundo?” 
Esta indagação perplexa é o lugar comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares esta charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta: o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.
A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. 
Foi o que Alice falou no fundo do poço: “Estou tão cansada de estar aqui sozinha!”. O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! 
Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada, e vice-versa, fechar uma porta bem aberta.
Somos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial e temos a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.
Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda a sabedoria tem que ser grave.
A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: “Oh, I beg your pardon!”. Pois viver é falar em corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para sua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. 
Foi o que o rato perguntou à Alice: “Gostarias de gatos se fosses eu?”
Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na Literatura. 
Até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, que quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: “A corrida terminou! Mas quem ganhou?” 
É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiverdes de ir a algum lugar, não te preocupes a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhastes.
Disse o ratinho: “Minha história é longa e triste!”. Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: “Minha vida daria um romance!”. Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.
Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro. E não se desesperes ao triste pensamento de Alice: “Devo estar diminuindo de novo”. Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.
Escuta essa parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. 
E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. 
A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor.
Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande, para o humor mais ou menos barato, que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; e por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. 
Chamo de “grandes ocasiões” os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade; em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos; em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado Maria, com as grandes ocasiões.
Por fim, uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. 
A dor também tem seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: “Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas”.

Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida. É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassarmos a fronteira de nossa própria dor, Maria da Graça.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Dois sonetos mais ou menos ornitológicos

Que se emplee el que es discreto
En hacer un buen soneto,
Bien puede ser;
Mas que un menguado no sea
El que en hacer dos se emplee,
No puede ser.

Don Luis de Góngora y Argote


Um jovem Yantl inexperto em aves,
Que um dia quis, rendidas, submeter
Plumas e voz de um pássaro-mulher,
Pediu a um ancião Yantl as chaves

De ornitófilas artes, e os arcanos.
– Alenta-lhe com beijos, disse o velho,
A voltívola alma. E a tal conselho
Juntou ciência de idades e dos anos:

– “Beijos nas asas, sim, mas também pô-los
Em mãos e coração, que mais dilatam
As almas fêmeas do que versos tolos,

E em deixá-los, sobretudo, esmera,
À mulher-pássaro, onde desatam
Os cânticos e os dons da primavera”.



Ave Maria, ave de arribação!
Se tratas de escapar, assim, aos frios
Primeiros do outono de um coração
Antigo, feito ao seu destino, um rio,

Resigno-me ao teu lúcido alvedrio,
Que deixes para trás uma estação
Sombria e gélida, o plúmbeo vazio,
Pelas auroras cálidas de verão!

Guiem-te, lépidas, mulher-hirundina,
As mais gentis e mais suaves correntes,
A enseada azul de águas transparentes.

Tuas claras manhãs, ave peregrina,
Saúdem, cordiais, delfins reverentes:
– “Tenhas um lindo dia, ave-menina!”

(Rib. Preto/1967)
Pode ser que o primeiro texto tenha sido postado neste O&B, mas já faz tempo. A nova postagem é mais pra não perder a oportunidade da epígrafe de Góngora. No mesmo jogo de oportunismo, o blogueiro achou uma jóia barroca do poeta cordobês no magnífico livro “Góngora y el Polifemo”, de Damaso Alonso. Aí, a refinada ourivesaria e a ornitologia mais sutil, embora em brevíssima referência, ao rouxinol, no caso, o primor das imagens, exerceram influxo irresistível para que se impusesse nesta nota. Os versos são de 1609, mas O&B nunca teve conceitos muito claros de atualidade e, no fim das contas, poesia é assim mesmo. Passemos ao rouxinol de Góngora:

“prodígio dulce que corona el viento,
en unas mismas plumas escondido
el músico, la musa, el instrumento.”     

Não sei de quem é a foto da andorinha; a da coruja é do Daniel Esser, que acaba de voltar de Afonso Cláudio, Espírito Santo, ande andou fotografando passarinho:


(NM)

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O tempo valioso de Mário de Andrade

Começou num botequim dos botequins de BH uma discussão ociosa sobre a fama que São Paulo tem, de exportar desastres políticos, uma grande bobagem, pois não teria pra onde exportar, dada a total auto-suficiência  quanto a esse item, em qualquer parte do território compreendido entre o Oiapoque e o Chuí. Isso pode ter origem na desastrosa experiência do janismo, alentada pela recorrência de natéis, malufes, quércias, pitas, fleurises, o delegado e o outro, etc. Mas a conversa começara, mesmo, foi com a fórmula “roubo, mas faço”, que se atribui ao governador paulista Adhemar de Barros, uma síntese do mais que perfeito cinismo universal.

Mas esse é o lado tenebroso de uma realidade que tem facetas muito mais relevantes, facetas esplêndidas, diga-se. Para um blogueiro que viveu a gala da juventude em Ribeirão Preto, muito acima da mesquinharia dos políticos paulistas e de quaisquer outras partes do Brasil, é fácil contrapor a humanidade e a arte de Euclydes, Portinari, Adoniram, da turma da Semana de Arte Moderna e de tantos outros que nos alegram e enriquecem.

Posto aqui um texto do grande Mário de Andrade (1893 – 1945), só pelo prazer de lembrar e desfrutar  do humanismo profundo, da generosidade e sabedoria de um brasileiro, de São Paulo, no caso, que nos deu a todos a referência essencial de “Macunaíma”.

O VALIOSO TEMPO DOS MADUROS

Mário de Andrade


Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora.

Tenho muito mais passado do que futuro.

Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas.

As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.

Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.

Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.

Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.

Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos.

Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário-geral do coral.

'As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos'.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa...

Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade,

Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,

O essencial faz a vida valer a pena.

E para mim, basta o essencial!

sábado, 27 de julho de 2013

De repente, um tapume pintado de azul

                             
                              “Cada tauba que caía //
                                     doía no coração (...)”
                              (Saudosa Maloca - Adoniram Barbosa)


Bastaram dois dias para que um enorme gafanhoto mecânico dotado de muitas manhas hidráu-licas, colossais dentes de metal, pusesse abaixo todo o conjunto de edificações que, heterogêneo, se sustentou, desde antes de adquirir os privilegiados, e especulados, foros do Bairro da Savassi, por décadas e décadas, com muita dignidade, na esquina de Fernandes Tourinho com Rua da Bahia. Quem pôde observar aquele estranho inseto desincumbindo-se da tarefa de demolir tudo que se erguia na área de 1.200 metros quadrados, sei lá, também pôde achar que, de fato, os dois dias foram o tempo que o monstro gastou para devorar telhados, alicerces, tubulações, telhas, assoalhos, ferragens,  rede elétrica, de águas e toda a alvenaria do grande sobrado mais ou menos arruinado, mas firme em suas fundações e paredes, e das casas e lojas ao redor, incluindo uma de construção mais ou menos recente, com um lindo pé de pitanga no terreiro, muitas rolinhas e bem-te-vis, bicos-de-lacre, algum sabiá.

Era um conjunto de edificações vivo, pulsante. Muitas pessoas nasceram, trabalharam, viveram nele, abrigados, protegidos como pássaros, abelhas, borboletas, num grande pé de jatobá, coisas pequenas, insignificantes, que o madeireiro jamais considera ao derrubar uma árvore. É assim de simples, embora no espaço urbano a construtora que elevará no local mais uma torre de concreto tenha precisado de uns quantos meses, algum dinheiro e, claro, de advogados, até que todos se conformassem em deixar o que, para qualquer empresa, era um espaço para construir, para eles o lar, doce lar, o local de trabalho, de ganhar o pão da vida.

Não tem jeito. A especulação imobiliária é poderosa e voraz. Paulatinamente foram desalojados o barbeiro, o relojoeiro, a lavanderia, o salão de cabeleireiro e manicure, a pequena oficina do eletricista, a do bombeiro; o pequeno restaurante, à hora do almoço, exalava olores e odores da cozinha mineira, frango com quiabo, vaca atolada, rabada com agrião e angu; costelinhas de por porco bem fritinhas, sempre; no galpão com teto de estrutura metálica, um “sacolão” oferecia frutas e hortaliças frescas à vizinhança; a colchoaria funcionou no local desde quando a Rua da Bahia nem chegava à altura do Minas Tênis Clube que, aliás, nem existia, além da loja e oficina do estofador...  O artesão das palhinhas preferia trabalhar na calçada, à porta de entrada do sobrado, tecendo assentos e espaldares de cadeiras e canapés.

O “mercado” é assim mesmo. Pessoas não contam, não entram em sua contabilidade nem fazem parte de sua lógica. Pode-se argumentar que o novo espigão será ocupado por outras pessoas, centenas de pessoas. É aí que está o busilis. Com tanta gente, tudo fica impessoal, não haverá mais qualquer termo de convivência, aquilo de você por o pé na Rua da Bahia e já ir dizendo “bom dia Fred”, “olá, Margarida”, “ô, Moreira, meu relógio já está andando?” Nada, nada. Sem nome nem alma, a multidão que vem traz tédio, muito, e muita solidão.

Depois de tudo derrubado, o material da demolição foi posto em caminhões e levado não se sabe pra onde, tudo em não mais do que dois dias. Nesse ínterim, foi construído o tapume, estacas e placas de aglomerado de madeira, uma base de tijolos, para proteger a obra prestes a começar. Do lado da Rua Fernandes Tourinho um grafiteiro anônimo registrou com letras grandes no tapume novinho a sua bronca: “BH, cidade sem memória”.

Não dá pra saber se foi por isso que, rapidinho, os donos do tapume fizeram-no pintar de azul, um azul-petróleo até bonito, contraponto pálido, porém, ao esplendor sem nuvens dessas tardes de julho de luminosidade incomparável. No ar fresco e transparente, o azul se expande desconcertante, profundo, em todas as direções. O grafite agora é um palimpsesto, enquanto, pretensioso, o tapume alça-se com suas tintas para o céu alto. É muita demasia, contudo, achar que possa realizar-se “nel blu dipinto di blu”, como na canção de Modugno. Calma, meus amigos. Isso é só metagoge ociosa e fora de propósito, a primeira. Outra, também ociosa, increpa com afeto a cidade do coração:

– BH, BH, que ingrata, pensares que a gente nem te liga! Liga sim. Liga demais.


(NM)

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Sônia Galastro conta mais de seu Planeta África

“Saímos de Doko, na República Democrática do Congo, num monomotor de doze lugares com destino a Bunia. A parada nesta cidade é para um segundo controle de passaporte e do vôo (com algo relacionado a espaço aéreo). A pista de pouso em Doko é uma pequena faixa de terra que agora foi aumentada em seu comprimento para que haja mais tempo para a freada dos aviões.

Ao subir na balança (devido ao tamanho da aeronave é preciso pesar mala e passageiro!) fui logo comentando que eu havia engordado muito ali no Congo, para gargalhada geral. É que no meu francês enferrujado troquei a palavra "grossir" por "grossesse" (ou algo assim) ou seja, eu havia dito que tinha me engravidado ao invés de ter engordado! Foi um senhor (belga ou francês) que veio em meu socorro com toda a sua franqueza. E foi este mesmo homem que me ajudou uma segunda vez com a tradução quando, já em Bunia, eu quis saber sobre uma aglomeração de pessoas, entre elas muitas mulheres, padres e alguns guardas (e quase todos usando uma camiseta cuja estampa era um rosto de mulher) no aeroporto asfaltado da cidade, onde também havia vários helicópteros das Nações Unidas.

O segurança já havia me dito que eles aguardavam um cadáver que estava para chegar. Mas foi o senhor franco-belga (?) que se ofereceu para ir colher mais informações para a minha mente inquieta. "Foi a mulher do arcebispo que faleceu. Por isso há vários padres aqui", disse ele. Pouco depois chegou uma caminhonete repleta de mulheres batendo palmas e cantando em suas roupas muito coloridas. Mas era o amarelo que predominava. 

Não pude ficar para ver o que se sucederia porque já estava na hora de embarcar. E, de volta no monomotor, sobrevoamos o lago Albert até o lago Victoria, em Entebbe (Uganda) num vôo de uma hora. Cruzando-se o lago Albert (também chamado de Mobutu Sese Seko, o ditador congolês) que pertence aos dois países, se cruza  também uma fronteira.

De Entebbe iríamos direto para Kampala, a capital, mas uma de minhas malas só viria no vôo seguinte e, assim tivemos que fazer uso da pousada da companhia em Entebbe até que a mala chegasse. Cometi o erro de colocar a bagagem de mão dentro da mala para ter de carregar apenas um volume, e isso causou excesso de peso. Só fomos saber disso quando já tínhamos aterrissado! Aproveitamos então para descansar e comer um "ugali" (angu branco) com molho de tomate e pimentão.

O fuso horário na Uganda é de uma hora na frente do Congo (RDC) e seis horas na frente do Brasil. Já era tarde quando chegamos a Kampala depois de uma viagem praticamente em linha reta numa estrada boa, mas de tráfego bastante intenso.
Quando chegamos ao hotel tivemos a grata surpresa de que nos seria dada uma suíte ao invés do "standard" reservado, pelo fato de o hotel estar lotado devido a uma visita dos presidentes da Tanzânia e de Rwanda, com suas comitivas, àquele país. Mas porque haveria uma suíte disponível para nós? Não compreendemos, mas aceitamos de bom grado aquilo que faria a celebração de nossos vinte e cinco anos de relacionamento bem mais prazerosa!

Já no bar do hotel, Benson ao piano nos homenageava. Depois veio dividir um drink e uma prosa conosco assentados ao scotch-bar. Na tevê ligada sem o som, as imagens me diziam que Nelson Mandela não iria esperar o nosso retorno à África do Sul. Senti um aperto no coração. Em Kampala visitamos o Museu Nacional, que tem uma boa gama de instrumentos musicais, depois o local onde os reis da etnia buganda são enterrados (Kasubi Tombs) e, finalmente, o palácio - residência real de Kabaka, rei buganda. Buganda é um grupo minoritário, semi-independente, com população de uns 2 milhões de pessoas. O rei buganda é uma figura símbolo na Uganda porém com poderes limitados.

Dentro da região do palácio (que não está em funcionamento), mas afastadas do prédio, estão as câmaras de tortura usadas por Idi Amim durante seu reino de terror. Causaram-me arrepios e indignação. Mensagens de desespero escritas com fezes ou sangue nas paredes são testemunhos das atrocidades da época. Mais de 300 mil pessoas morreram durante a ditadura. O governo atual está no poder há quase trinta anos. Conversei com muitas pessoas e todas querem mudanças, mas as coisas não são tão fáceis assim. A história do país é carregada, pesada, muito embora o dia a dia das pessoas não o denote.

No dia 27 de junho, Sam (cujo nome africano é Kazibwe) - nosso guia e motorista - veio nos apanhar no hotel para uma longa viagem que atravessaria inclusive a linha do equador. Na estrada, Sam nos distraía com conversas e palavras em Luganda: matooke = banana (na estrada havia bananeiras e bananas a perderem de vista e que, segundo Sam, foram importadas do Brasil primeiro, pela Ásia e, depois pela África); mwengue/muganga = cerveja local feita de banana; bulamo = vida e asssim por diante. As cobras são animais satânicos e o "Crested Crane" é o pássaro nacional.

Grandes mamíferos, os primatas de Bwindi

A infinidade de motocicletas, fabricadas e importadas da Índia, são chamadas de "Boda Boda" e carregam vários passageiros, quando não uma família inteira. Em uma delas cheguei a ver um neném dentro da jaqueta (na parte das costas) do motorista. A necessidade leva as pessoas às mais diversas formas de criatividade. Gastamos umas sete horas e meia de viagem de Kampala até o Parque Nacional Rainha Elizabeth (Sam e eu fizemos um pouco de "poko poko" ou seja, fofoca: porque é que esses "benditos" governantes não trocam o nome deste parque e de outros lugares que cheiram a colonialismo? Certos governantes não gostam de escutar essas coisas.)
Ainda na estrada pudemos avistar de um ponto mais alto o grande vale Rift de uma beleza sem igual, e por onde passearíamos em ocasião seguinte. Também passearíamos de barco pelo canal de Kazinga, onde avistaríamos búfalos, elefantes e hipopótamos em seu habitat natural. Embrafustaríamos mata adentro na reserva de Kyambura numa caminhada de três horas, na tentativa de vermos alguns chimpanzés. No meio da savana, que só se vê em filmes, avistaríamos os famosos leões que sobem em árvores.

Tudo isso era uma prévia para a finalidade principal da viagem: ver os gorilas das montanhas! Mas estes não vivem no "parque da rainha" e sim na impenetrável floresta de Bwindi, o que fez com que levássemos mais meio dia de estrada. Bwindi, na verdade significa "impenetrável", "escuridão". E o parque onde vivem - patrimônio da Unesco - chama-se "Bwindi Impenetrable Forest National Park", situado na parte oeste da Uganda. O parque possui metade da população mundial de gorilas, ou seja, por volta de 350, além de outros animais, entre eles chimpanzés. A Uganda tem a maior concentração de primatas no continente.

Nossa pousada, de frente para a impenetrável floresta, tem doze quartos e foi quase toda construída utilizando-se matéria prima local como cipó, sisal e pedra ardósia cor de rosa. Nos anos 90 os pigmeus Batwa foram retirados da floresta e transferidos para áreas nas cercanias da comunidade de Bwindi. Tivemos oportunidade de visitar uma das famílias de pigmeus, que atualmente precisam do turismo para a sobrevivência. E em 1994, a floresta foi declarada patrimônio da humanidade.
Da pousada eu ouvia um tocar de tambores constante, mas só no dia seguinte, quando fui dar um passeio pela comunidade com Sam, é que descobri que os tambores eram tocados por uns meninos que fazem parte do grupo de órfãos (257) da região. As crianças dançaram para mim, espectadora única, enquanto uma rápida tempestade desceu dos céus. Foi a conta de Sam arranjar uma sombrinha e a chuva passar como se nos ignorasse.

O dia 30, um domingo, foi realmente o grande dia. Da pousada Sam nos levou para a entrada do parque Bwindi onde os funcionários (guias e ajudantes) nos ensinam sobre os gorilas e a floresta e depois nos dividem em grupos. São três grupos de oito pessoas por dia, com apenas uma hora para ver os gorilas a partir do momento em que os encontramos. Alguns guias com GPS os localizam anteriormente à saída dos grupos. Podemos caminhar quarenta minutos como foi o caso do nosso grupo, ou levar um dia inteiro, como no caso de um casal de alemães, para chegar aos primatas. Cada grupo é selecionado para visitar uma das três famílias de gorilas da região. Confesso que foi uma experiência muito emocionante ficar quase que cara a cara com aqueles animais que dividem conosco (humanos) 95 ou 98% dos seus gens. E como eles são dóceis! Há tanto o que aprender com a natureza!

Bonito, sim, mas tudo longe demais

Já a viagem de volta a Entebbe, sem passar por Kampala, durou doze horas e meia de automóvel, sendo que Sam parou para descansarmos e almoçarmos numa cidade chamada Mbarara. Pouco antes dessa cidade há uma central de um campo de refugiados. Aqui eles são recebidos, vindos de outros países fronteiriços, e depois distribuídos para outros campos, de acordo com suas nacionalidades. Passamos também por uma fábrica de remédios que usa as ervas locais. [Quando visitei os pigmeus adquiri um livreto sobre as plantas medicinais que eles usavam (creio que não usam mais porque foram retirados da floresta) e que foram catalogadas por alguns estudiosos.]

Minha imaginação se perdeu nessas tantas horas de viagem, em meio a observações atentas, com olhos bem abertos, de tudo aquilo que passava caminho afora. Desde gigantescos e pontudos chifres de bois ou as intermináveis plantações de bananas até os cenários de esculpidas belezas naturais coloridas, às vezes, pela densa poeira levantada nas estradas.

Um sol vermelho e fulgurante sobre as águas do canal de Kazinga ainda estava preso na memória,  qual um amanhecer que não findasse. Nas montanhas e na alma restava o frescor vivo da floresta impenetrável. E a imagem daqueles robustos e dóceis primatas se assentava de maneira delicada no pensamento que apenas recordava. Cinesia e estagnação perfuravam vivamente  minhas retinas ávidas e maravilhadas, enquanto eu pensava em como a Mãe África é realmente abençoada. Seja através das pequenas gentilezas do gerente Mordecai ou do canto sincero dos órfãos de Bwindi. Terra e gente confundem-se, se mesclam, e me inundam de uma sensibilidade tão profunda de quase atropelar o coração. No ar há algo de misericordioso. E criancinhas acenam, sorriem e correm paralelas às rodas do carro que pulsa lentamente no curso árduo e sinuoso da estrada.

Era já início de noite quando atingimos a margem do lago Victoria para o atravessarmos em um ferryboat do governo. Na outra margem estava Entebbe. Porém, a poucos metros do ferryboat, nosso carro pede arreglo. Um ajuste de contas justo para uma viagem longa e penosa. Sam fica desolado por não conseguir amenizar o cansaço do automóvel. Nós apaziguamos os ânimos dele, sugerindo pegar um dos barcos de madeira motorizados disponíveis também para o transporte até a outra margem. Sam deixa de sorrir. O incidente esvaiu-lhe as forças e a alegria.
Tiramos malas e mochilas do carro e as carregamos até o barco. Colocamos umas sujas e surradas jaquetas salva-vidas e, em poucos minutos, atravessamos esta parte estreita do lago. O carro, empurrado por uma dúzia de mãos, fica lá num canto aguardando a solução e o retorno de Sam. Ainda transtornado, Sam negocia um carro parado na margem de Entebbe para nos levar até a pousada. Carro brilhante de polido em meio a todo tipo de coisas e pessoas a serem desembarcadas ou embarcadas no ferryboat: bananas, cabritos, sacolas cheias, crianças...

Tão logo o carro parte, observo que o ponteiro da gasolina está na reserva e a luz está acesa no painel. Comento minha observação com Bruce, que apenas esboça um sorriso. E assim esperamos que o automóvel nos leve até a pousada para um merecido descanso. Essas coisas acontecem, dizemos um ao outro. E recostamos a cabeça no encosto do carro até que, finalmente chegamos à pousada. Já é noite. Mas estamos felizes, satisfeitos. Com um grande aperto de mão nós nos despedimos de nosso guia e companheiro de jornada. Adeus, Mr. Kazibwe. Até uma próxima volta, com certeza.

Abraços saudosos,


Sônia”

sábado, 29 de junho de 2013

Collage parisienne

O que se diz é que os anos trazem sabedoria, experiên-
cia, essas coisas. Que nada! Eles vêm para surrupiar, espoliar, reduzir possibili-
dades, principalmente as que mais graça dão à vida. Aceitá-los, por inexo-
ráveis, requer doses cada vez mais altas e concentradas de humor, sem as quais nem daria pra gente ir levando. Um blogueiro se aborrece com o coro de cigarras que invade suas insônias, como um discreto chiado, às vezes, às vezes como manifesto zumbido de enxame que, se chega associado a uma boa enxaqueca, pode transformar-se em estrídulo trilar de muitos grilos.

Sem levar em conta, por insidiosa, asserção segundo a qual mineiro de Minas Gerais não fica doido, mas pode piorar, a lembrança de um sujeito lá do Sudoeste,
 “vem mesmo a calhar”, como aquelas cordas que surgiam do nada nas histórias em quadrinhos. Ele só resolveu enlouquecer depois que começaram a retinir dentro de sua cabeça os sinos de Notre Dame.

Tinha desses fumos, Europa, cultura francesa, Faubourg Saint Honoré, Rive Gauche, Quartier Latin, Montmartre, Montparnasse, Brigitte Bardot, la Deneuve, Le ça ira, ça ira, ça ira  Piaf, Piaf, Le ciel bleu sur nous peut s´enffrondrer // Et la terre peut bien s`ecrouler // Peu m`importe si tu m`aimes // Je me fous du monde entier...

Oh Paris! Mon coeur, mon amour, Aznavour, mon oncle, Tati, tatibitate, petit pois, petit gateau, Josephine Baker, Woody Allen, Nijinsky, Picasso, Claude Debussy, crepe suzette etceterá.  E com a mesma interjetiva e sincera admiração, Montmorency, Chenonceau, St. Aignan, Langeais, Azai-de-Rideau, Le Lude, Amboise... Oh, Loire, ces chateaux!

Tudo bem, mas se o ouvido insiste em ouvir independentemente de quaisquer estímulos externos, o jeito é consultar um especialista.

- Não se preocupe. Isso geralmente ocorre quando há alguma perda de capacidade auditiva, que sempre vem com os anos.

- Ah, bom. Então é assim. A gente vai ficando velha e surda. Aí começa a ouvir abelhas zumbindo com suas lépidas asinhas, mesmo que não existam abelhas, só o silêncio da noite estrelada!

A audiometria apenas confirma o prejuízo da percepção de algumas freqüências mais agudas.

- E aí, doutor.

Veio a prescrição, umas pastilhas que deveriam inibir a auto-estimulação do nervo ótico e, pelo menos, baixar o volume dos zumbidos, nada, pois, tão intenso ou dramático feito aquele pneumotórax do poema de Bandeira, nenhum tango argentino. As pastilhas, uns placebos ordinários. Otorrinolaringologicamente, advérbio e tanto, que fiasco! Mas ligar pra isso, pra quê?

La Marianne, ou a Liberdade (de Delacroix) conduzindo o pobo, barricadas, Gavroche, as cabeças de Danton e de Camille Desmoulins, em outra cesta a de Maria Antonieta e, suaves, as mãos de Teresinha de Lisieux, aquele olhar tão meigo vindo do seu “santinho”. E tons sombrios de Baudelaire, linhas imprecisas de Mallarmé, cores vivas de Toulouse-Lautrec; de Breton e Antonin Artaud, as desusadas formas...  Perturbar, em seus devaneios fauvistas, entendiada odalisca de Henri Matisse, nem pensar. Nem desviar de seu destino branca caravela.

Maximilien de Robespierre, Saint-Just, Jean-Paul Marat, Napoleon... Napoleon, eu? Non. Ainda non.


(NM)

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Pequeno tributo a Carlos Alberto


Carlos Alberto foi embora. Com a mesma dignidade e compostura que manteve ao longo da vida, aos 78 anos, depois de haver lutado com valor admirável contra um inimigo cruel e implacável. Recebeu a Parca sem amargura nem ressentimento, limpas, as mãos, a alma limpa, a vida exemplar até o último momento. Lutou muito pela vida, mas resignou-se estoicamente à Fatalidade, que poderia reconhecer em quaisquer circunstâncias, posto que, embora natural de Belo Horizonte, era filho de pai e mãe portugueses. Ao se aproximarem os mensageiros dela, ele os teria reconhecido, mesmo se não tivesse sido catedrático de Clínica e Cardiologia da Faculdade de Medicina da UFMG e médico dos mais qualificados. Ele tinha  a paixão da Medicina, que exerceu e dignificou como professor ou no prestigioso consultório que manteve por mais de 40 anos.

Numa manhã de domingo, dos domingos lá do Tip Top, ele contou, sem qualquer afetação ou jactância, antes com o humor refinado e sutil com que podia enriquecer qualquer conversa banal, que havia auscultado vida afora corações aos milhares, corações de jovens, de velhos, de homens, mulheres e crianças. Meticuloso, chegara a um número estimado cuja ordem de grandeza perdeu-se em desvãos da memória, mas a referência que ficou é de um número estratosférico.

Assim era o doutor Carlos Alberto, a vida a auscultar corações, o que continuou fazendo mesmo depois de fechar seu consultório de médico e mesmo sem estetoscópio. Ele auscultava, auscultava, sempre com o maior interesse humano em cada pessoa que se acercasse dele, cujas vicissitudes se esforçava em compreender e aceitar. Na manhã do Domingo de Páscoa, cercado de muito afeto, ele acolheu com serenidade a Parca que, respeitosa de sua inteligência brilhante, da lucidez cabal de homem culto e sábio, até o último instante permitiu-lhe conservar em toda inteireza.

Carlos Alberto de Barros Santos tinha, também, a paixão da literatura, que cultivou desde a juventude e, como poucos, conhecia o caminho dos poetas, vivamente conservados em sua memória de prodígio versos e mais versos, os mais candentes. Vê-lo e ouvi-lo dizer de cor textos inteiros de Shakespeare, poemas de Poe ou John Donne, de Keats, de quem gostava tanto, era parte do privilégio de sua convivência. Também podia declamar Bandeira, Drummond, Abgar Renault ou cantar, embora não fosse propriamente cantor, qualquer composição relevante de nosso cancioneiro popular. Com as letras e o idioma francês tinha a maior intimidade.

Há pouco mais de dois anos, este O&B começou a ser veiculado na rede eletrônica e, com generosidade e despojamento, Carlos Alberto iniciou a colaboração só interrompida pelas insuperáveis adversidades que, de uns meses para cá, passou a enfrentar. Foram mais de cem textos, incluindo crônicas, ensaios, um ou outro poema, cartas, artigos, comentários, tudo impregnado do mais denso e intenso humanismo, qualificado por sua grande cultura e erudição.

No dia 1.o de janeiro deste ano O&B publicou o último texto enviado por Carlos Alberto, primoroso, brilhante, que em sua brevidade oferece toda a dimensão do homem sábio, consciente do precário da existência:

Caminho de flores

– O quê vamos beber neste fim de ano? – dizia-me um amigo que já não está neste mundo.  

– O que aparecer, respondia-lhe. Não era uma resposta convencional, era pura verdade: cerveja, uísque, vinho, pinga, o que surgisse.

Pois bem, fim de ano é isso mesmo, o que for oferecido a gente manda pra dentro, e tudo, como no poema drummoniano  é “farra honesta acabando em confidência”. Afinal, se não tivesse outra importância – e acho que não tem – a passagem de um ano para outro, empanturrada de bebidas alcoólicas, serve ao menos para renovar esperanças, aquelas mesmas que começamos a cultivar no início da vida consciente, envoltos na clepsidra em que nos escoamos e – Quem sabe? –  para nos lembrar de que somos feitos de matéria perecível.

Dirão os racionalistas, entre eles eu mesmo: é somente uma data, o tempo não para nem divide nada. É verdade. Só que a marcação serve para dimensionar o lugar que nos foi imposto sem sabermos pra quê nem por quê.

Durante essa caminhada, por vezes tortuosa e agreste, convoco a todos para que procurem divisar, acima de tudo, as árvores floridas que a circundam. (Carlos Alberto)     

A contribuição de Carlos Alberto de Barros Santos deu a Ociosidades & Bagatelas, que começou como uma brincadeira, o vigor que só uma inteligência poderosa como a dele poderia ter injetado. O blogue passou a ser algo que merecia ser lido, e nossos amigos responderam com um número de acessos que já se aproxima dos 16 mil. Pois é. Na manhã do Domingo de Páscoa, Carlos Alberto foi embora. Serenamente. (NM)

quarta-feira, 13 de março de 2013

Voltando ao peixe à comodoro da Cantina do Lucas



Voltar à Cantina do Lucas, no Maletta, Avenida Augusto de Lima com Rua da Bahia – BH, depois de muitos anos e achar tudo igual! Mas as caras, poucas, na hora de pouco movimento, eram novas, irreconhecíveis. Melhor, pelo menos a quem queira povoar as mesas vazias com fantasmagorias da própria juventude, mero truque, porém eficaz, que a gente vai aprendendo à medida em que a vida se estende – Ou se encurta, sei lá! – para transformar ausências em presença e, assim inverter a roda do tempo, impor-lhe, quando  absolutamente necessário ao nosso coração, um conveniente sentido anti-horário. Isso de saudosismo é uma grande bobagem, mas é aceitável qualquer artifício para reencontrar afetos, desde que não se perca a capacidade de contemplar as estrelas altas.

Foi chegar lá, bem na entrada da Augusto de Lima do Edifício Archangelo Maletta, à esquerda, e deparar com fantasmas, muitos e muito queridos. Não dá pra enumerar a todos, por isso de chegarem em turbilhão. Mas sempre é possível nomear os que chegam de mansinho, como o espírito generoso e sábio do prof. Moacir Latterza, cuja  voz pausada e clara fazia eco a Jacques Maritain e a Alceu de Amoroso Lima, mas ensinava que a invenção do tambor e a descoberta de suas possibilidades essenciais por algum primata ancestral, precede o milagre da palavra articulada. E veio a aura tranqüila e gentil de seu Olímpio, o mítico garçom, com seu sorriso calmo e a genuína alegria de receber e atender os amigos da casa. E “ouvir” Geraldo Magalhães compartilhando entusiasmo e emoção sobre a arte de Fellini, que tanto amava, “Dolce Vita”, “Oito e Meio”, e “Amarcord”, então em exibição em cinemas da cidade.

Você reacende um circuito de lembranças que, de repente, devolve a entrada do Lincoln Gonçalves e do Délio Rocha, compenetrados e decididos em direção ao fundo da galeria para, certamente, pararem no Lua Nova, onde haveriam de refrescar o começo da noite numa cerveja, desfrutarem seu convívio de velhos amigos e a conversa sempre inconclusa de jornalista. Também sem alarde, vem a lembrança de Achilles Reis, cronista de turfe e de outras coisas mais, ativo, quase irrequieto, disposição excelente, o humor sempre refinado e vivo, aproximando-se na companhia do Rogério Carnevalli, com quem ainda se pode tomar um chope ou outro lá no Tip Top. – E então. Você tem uma “barbada” pra mim?

Ele retruca com solicitude: – Sábado tem bons páreos. Mas não sei se dá pra encarar. Uma pule? Difícil. Talvez um placê.  

Pois é. Mas não eram os cavalos o que nos aproximava, e sim os tangos, o tango, outra paixão do Achilles,mas ele misturava as duas coisas. Conheceu nos hipódromos da vida o lendário Irineo Leguisamo, jocquey preferido de Carlos Galdel, de quem mereceu “Leguisamo solo”, tango com letra de Alfredo Le Pera, e que mais de uma vez disputou e venceu o Grande Prêmio Brasil. O papo com Achilles não acabava antes da gente cantarolar “La Cumparsita”, “Mano a mano”, “Esta noche me emboracho” e, claro, “Por uma cabeza”: ...que al jurar sonriendo // el amor que está mentiendo // quema en uma hoguera // todo mi querer...   Isso, na Cantina do Lucas ou onde quer que a gente se encontrasse.

Assim, de um jeito quase mediúnico, reencontrei na mesa do Lucas onde a gente celebrou a apresentação de Jesus Cristo Superstar em BH, no início dos anos 70, Tadeu, que atuava na peça, Tânio, Gilberto Naldi, Belmiro Arruda, que também atuou no espetáculo, Estêvão, sujeito miudinho, que nem chegava ao metro e sessenta, porém um barítono desses de coro de igreja ortodoxa.

Da pequena “varanda” que se debruça sobre a rampa de acesso a gente tem uma visão ampla da galeria. Às vezes, lá no fundo, duas mesas deslocadas do Lua Nova até o outro lado do grande corredor de acesso, próximo à escada rolante, acolhiam, uma, o Geraldo Magalhães, o Zé Nava, irmão do grande memorialista, e Amélia. Bebiam devagar a cerveja e conversavam, conversavam. Literatura e cinema, naturalmente. Na outra, a gente podia ver, de vez em quando, o Luiz Fernando Perez e o Chico Brant, da sucursal mineira do Estadão/Jornal da Tarde. Em uma ou outra ocasião, Carlos Pereira, também jornalista, juntava-se a eles. Lua Nova não tem mais, mas se essa trinca querida se dispuser a voltar ao Maletta, poderia ser no Lucas ou num dos novos botequins das recém recuperadas (agora dizem “revitalizadas”) varandas da sobreloja, de frente para a Rua da Bahia, eu bem que topava. Ninguém precisa ir de paletó nem gravata, seria só pra espairecer um final de edição imaginário, sabe como é.

Agora o seguinte: a gente encontra no cardápio do Lucas algumas das mesmas preciosidades do tempo em que jovens estudantes das sólidas repúblicas do Maletta, uma ou outra “sereníssima”, feito a de Gênova, se aboletavam ruidosamente para desfrutar o melhor talharim parisiense da cidade ou o peixe à Comodoro, que continua ótimo, mas já não vem com os dois talos de aspargos espetados na crosta gratinada sobre o molho, que sugeriam mastros de caravela. Ainda estão no prato, mas cortadinhos, embutidos, lá dentro.

Mas essa é uma remissão a um tempo diferente da Cantina do Lucas, anterior, em que nem tudo era bulício. Podem perguntar ao Paulo (Faleiros), ao Wagner Issa, ao Júlio, ao Mané Coco, a qualquer um dos Tonhões, ao doido ou ao outro, ao Jonas Moses e a tantos mais, à Sônia, a Maria Izabel, a Marlene, à Silvinha... A conversa cáustica, áspera, contra a ditadura sufocante era murmurada entre dentes, porque os delatores estavam por toda parte e também na cantina, mas sempre havia o sussurro brando de palavras amorosas, só para os ouvidos da namorada. (NM)