domingo, 2 de dezembro de 2018

Tempo de colégio

Dois colégios, os dois na cidade vizinha, que ali não tinha nenhum. A “jardineira” amarela e marrom feito bem-te-vi levava os estudantes todas as manhãs, cerca de uma hora nos vinte quilômetros de estradinha poeirenta, ou lamacenta, conforme a estação, e os trazia de volta. Os rapazes estudavam no “São Gabriel”, dirigido por religiosos italianos. Haviam chegado em meados dos anos 50 com suas cicatrizes da guerra, que mal acabara; alguns traziam feridas abertas. Discretos em política, celebraram a visita do presidente Giovanni Groncchi ao Brasil com genuína empolgação democrata-cristã.


Sem maior impacto na vida do colégio, surgiu, não se sabe de onde, uma entidade que se propunha a “conscientizar e mobilizar os jovens católicos contra o comunismo ateu”. A EAC dava carteirinhas aos acólitos, prestigiava novenas, ladainhas e ave-marias em geral,  ”momentos de oração” e “cursilhos de cristandade”. Os “irmãos” estimularam a participação dos alunos, mas só Eduardo “Gafanhoto” – pernas compridas e arqueadas, cabeça pequena – doido pra ser líder de alguma coisa, encampou a causa com entusiasmo. As adesões, contudo,  foram mínimas, e ele teve de conformar-se em ser líder dele mesmo. Comunista pra merecer beligerância não havia nenhum, mas o desinteresse pela EAC também tinha outros fundamentos, como o sugerido de modo enviesado em comentário do Márcio Gerep, do quarto ano:

– Esse “Gafanhoto” já chegou aqui como o chato mais phthírico do colégio.

Em manhã ensolarada de radioso abril, o “teaser” misterioso, Oh! não só no pátio e nos muros do colégio, mas em tudo quanto é poste, barranco, calçada, pavimentos de paralelepípedos, por toda a cidade, três enormes e intrigantes letras a cal: UBG, uma comoção. Nos dias subsequentes, a pichação continuou, só para aprofundar o enigma: “O que será UBG?”, “A UBG está chegando!”, “Cuidado com a UBG!”

Enfim, o inimigo à vista. “Gafanhoto” exultava ao convocar sua militância para a pugna inevitável: “Isso só pode ser coisa comunista. Eia, sus, avante, à luta!”

Passados uns dias, novas pichações deram extensão à sigla: União dos Bocorongos Guarititas, outros mais e Zé Cássio e Nêta, os dois do terceiro ano, assumiram a invenção da história, “um trabalho do cão”, mas se divertiram. Era tudo ficção: não havia “união” alguma, “bocorongos” não existem, “guarititas” muito menos. E Zé Cássio, impiedoso: – A UBG é tão fantasmagórica quanto a EAC.

Decepção grande, “Gafanhoto” quase soluçando: –  Ele não podia, não podia dizer uma coisa dessas.

Os “irmãos”

Menos de trinta anos, Irmão Giovanni lecionava francês. Irritadiço, tenso, o tempo todo parecia prestes a um ataque nervoso. A guerra ainda sangrava nele: na penúltima semana antes de acabar na Itália, brincava com outras crianças em escombros de sua vizinhança. Veio o ronco dos aviões americanos, o estrondo, bombas. Correu para casa e não havia mais casa, nem pai, nem mãe, irmãos, cachorro, nada ...   

Baixo, atarracado, quase calvo, tez morena, que traía sua origem meridional, Irmão Wenceslau, quarenta e poucos anos, era o diretor de fato, porque o titular, Irmão Angélico, andava com problemas de saúde e passava recolhido a maior parte do tempo. Impressionava por sua cultura que, aos olhos de seus jovens alunos, abarcava todos os campos do conhecimento. Em situações de emergência, substituía qualquer professor, de qualquer disciplina, inclusive Português. Entrava na sala e perguntava: – Onde paramos?

Numa dessas atuações eventuais ele ofereceu, pela primeira vez, a um bando de adolescentes desatentos, uma dimensão palpável de Camões e de “Os Lusíadas”: –  Sua epopeia está no mesmo nível da “Eneida”, de Virgílio, ou da “Jerusaleme”, do Tasso. É uma glória do Ocidente, coluna do templo da Língua Portuguesa.

 Dante?

 Bem. A “Comédia” é outra coisa. Incomparável. Alighieri, modesto, compôs assim, sob o título genérico, o poema monumental. “Divina”? Não, nunca cometeria tal petulância. Contemporâneos e pósteros é que a distinguiram com o adjetivo supremo, e ficou “Divina Comédia” para sempre.

Para quem nunca tinha ouvido falar nessas coisas, foi uma revelação. Por essas é que, quando Irmão Wenceslau falava, até as aranhas do teto ficavam quietas, escutando. De jovem, ele foi com as tropas italianas à África do Norte, justo por sua proficiência no idioma do inimigo. Não contou que experiência viveu ou presenciou, mas terá comido do pão que o diabo amassou naquelas escaldantes vastidões africanas. No colégio, dava aulas de matemática e ciências naturais. E nunca mais disse uma palavra em inglês.

Magro, alto, cabelos claros, olhos muito azuis, Irmão Angélico estava perto dos setenta anos.   Contavam que fora preceptor do filho do Conde Ciano, aquele genro inútil de Benito Mussolini, e também que estudara física quântica e outras complicações subatômicas com ninguém menos que o laureado Enrico Fermi. Homem carrancudo, inacessível, não dava pra gente perguntar-lhe a respeito, não dava pra perguntar nada. Poucas vezes alguém lhe ouviu a voz, praticamente não falava, mas sua autoridade de diretor era incontrastável.

Aconteceu que Irmão Gerardo, o mais jovem daqueles italianos, que sempre flertava com o mulherio, se tinha oportunidade, e sempre tinha, bem-apessoado o sujeito, dava aula de Latim e canto orfeônico. Alguém pediu que cantasse alguma coisa da época da guerra e veio uma canção de barqueiros do Rio Brenta, depois iucaidi, iucaidá.  Aí, entusiasmou-se, justo no “jingle” dos “jingles” do fascismo, mas não passou de Se tu dall'altipiano guardi il mare // Moretta che sei schiava fra gli schiavi ...

Irmão Angélico ouviu e irrompeu furioso sala adentro. Ninguém, fora o “irmão” cantor, entendeu tudo que disse em italiano áspero, só a esculhambação. Em seguida, retirou-se, e Irmão Gerardo, recomposto, continuou a aula sem Faccetta nera: escapou-se pela “Picolissima serenata”, que ainda tocava no rádio:

Mi farò pensare un soldino di sole
Perche regalare lo voglio a te
Lo potrai posare sui biondi capelli
Quella nube d'oro accarezzerò...

Questa piccolissima serenata
Con un fìl di voce si può cantar
Ogni innamorato all'innamorata
La sussurrerà, la sussurrerà

Algum tempo depois, Irmão Angélico foi-se embora pra outra cidade, outro colégio, mais antigo, base da sua congregação. A gente não sabia que levava, fundo, no estômago, um câncer devastador, o que não é coisa fácil de levar. Ah, e a tristeza de não voltar nunca mais à Itália, e essas nostalgias irremissíveis, próprias, de cada um! É de se supor que Irmão Angélico se tenha empenhado sinceramente em nunca mais ouvir aquele rataplã marcial que – colonialista, racista, machista – embalava  Il Duce em seus delírios imperiais. Mesmo assim, não dá pra conjeturar se, feito um persistente acufênio, a canção não lhe terá reboado na memória à chegada do Anjo?

Se tu dall'altipiano guardi il mare
Moretta che sei schiava fra gli schiavi ...
Vedrai come in un sogno tante navi
E un tricolore sventolar per te
Faccetta nera, bell'abissina
Aspetta e spera che già l'ora si avvicina! (....)

A “irmã”

As moças estudavam no “Helena Guerra”, da congregação das Irmãs Oblatas do Espírito Santo. Irmã Lourença, a reitora, no discurso e na práxis destoava no âmbito conservador e se esforçava para que as estudantes aprendessem a enxergar o Brasil desigual: os pobres existem e são muitos. Grandes olhos claros, sobrancelhas se encontrando com suavidade sobre a linha do nariz quase aquilino, discretamente etrusco, que traiam o louro dos cabelos recolhidos em seu hábito de freira. Na voz branda explicitava seu encantador acento toscano, conservado sem esforço. O que cultivava com diligência? Compaixão, misericórdia, sobretudo para com os “mansos e humildes de coração”.

Tons de róseo de entardeceres de outono sobre as serranias do Sudoeste cintilavam nas maçãs do rosto dela. Se era a favor de reformas, do governo ou outras, não dá pra saber, mas o mais provável é que achasse que, como estava, não estava bom. E Irmã Lourença era muito bonita. (nm)


segunda-feira, 12 de novembro de 2018

¡Que nos quiten lo bailao!


Maria Luisa recebeu de uma amiga mexicana graciosa montagem, imagem e versos de Sor Juana Inés de La Cruz que, desde Sevilha, enviou ao blogueiro: “No me resisto a compartirla contigo. Se la voy a mandar también a Rosinha, por eso de ¡que nos quiten lo bailao!” Bom. Rosinha é bailarina de ofício, literalmente, muito baile vida afora. Dançar é sua riqueza. ¡Que nos quiten lo bailao!” é um jeito muito espanhol pra expressar uma ideia do tipo “Olha, meu chapa, você pode criticar, condenar, reclamar, o que quiser. Mas o que eu dancei está dançado e não cabe devolução nem retorno”.

O blogueiro, por sua vez, não resiste à oportunidade de compartilhá-la aqui, homenagem de O&B à grande poeta. É inacreditável que ela tenha escrito o que escreveu na cidade do México do Século XVII!

Sem referência na memória referência aos versos que aparecem na montagem, que não tinha certeza de serem da grande poeta, recorreu a Maria Luisa: – Não me lembro de tê-los lido...

Ela esclareceu –  Son de Sor Juana, por supuesto, de un soneto titulado "Escoge antes el morir..."

Ei-lo:
Escoge antes el morir que exponerse a los ultrajes de la vejez

Miró Celia una rosa que en el prado
ostentaba feliz la pompa vana,
y con afeites de carmín y grana
bañaba alegre el rostro delicado;   

y dijo: Goza sin temor del hado 
el curso breve de tu edad lozana,
pues no podrá la muerte de mañana
quitarte lo que hubieres hoy gozado.   

Y aunque llega la muerte pressurosa
y tu fragrante vida se te aleja, 
no sientas el morir tan bella y moza:   

mira que la experiencia te aconseja
que es fortuna morirte siendo hermosa
y no ver el ultraje de ser vieja.

– Sor Juana era una adelantada a su tiempo, diz Maria Luisa. Recuerda eso hombres necios que acusais // a la mujer sin razón...
“sin ver que sois la ocasión
de lo mismo que culpáis;
(...)
Opinión, ninguna gana,
pues la que más se recata,
si no os admite, es ingrata,
y si os admite, es liviana.

Siempre tan necios andáis
que, con desigual nivel,
a una culpáis por cruel
y a otra por fácil culpáis.

¿Pues como ha de estar templada
la que vuestro amor pretende?,
¿si la que es ingrata ofende,
y la que es fácil enfada?

Feminista avant la lettre? Não sei. Mas o baile que bailou Sor Juana Inés está bailado, bailado para sempre. Suas palavras de fogo resplendem como uma grande constelação que, em meio a jornada triste no deserto da insensatez misógina, da discriminação obtusa, da tosca intolerância, pode oferecer Norte seguro ao peregrino. (nm)

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Pontes, montes, e o DNA da Língua Portuguesa


Dois amigos queridos do blogueiro, um casal, têm o privilégio de viver na cidade encantada de Sevilha, de caminhar pelas margens do Guadalquivir em qualquer esplêndida manhã, ao entardecer, depois que o calor do verão se deixa abrandar por alguma brisa vinda não se sabe de onde, ou na noite estrelada que, sempre, tarda em escurecer nessa estação. As pontes do Guadalquivir, a de Triana em primeiro lugar: podem cruzá-las em qualquer sentido, parar no meio pra contemplar a Lua refletida nas águas mansas. As torres, claro, as torres... as da Catedral, a Giralda, camafeu que enfeita o colo da cidade amada de João Cabral, amada como se fosse uma mulher, e a Torre do Ouro, debruçada sobre o rio que, sempre embevecida, contempla. Mas tem outras, muitas outras, todas bonitas, esguias, alçando-se para o azul alto para alardear antigos foros de velhas igrejas no Casco Histórico.

(O postal de Sevilha é de Akiro Arrakis)

Às vezes, porém, o Sol da Andaluzia exagera, obrigando os sevilhanos a buscar refresco: um “vasito” de vinho, uma “sangria”, cerveja... Calma, gente! Também pode ser um sorvete de baunilha. Camisetas para venda aos turistas, nas calçadas perto da Catedral ou em qualquer loja de “souvenirs”, trazem consignado em bom andaluz: “!Ojú, que caló!”. O blogueiro havia registrado "Juó, que caló", mas Maria Luisa mandou a correção. Precisão linguística: O elfo da errata fez você escrever “!Juó, que caló!” quando o que você queria dizer é “Ojú, qué caló”,  onde isso “Ojú” é a deformação andaluza de “Jesus”, e também é dito “Ozú” e “Osú”.

Não dá pra todo mundo migrar pra longe do calorão. Os meus amigos, porém, podem “voar” para o Norte, feito as andorinhas, para temperaturas amenas, aprazíveis. Em plena arribação, mandam notícias:

- Hoy ya hemos entrado en Asturias, por las tierras de la Senda del Oso y las Xanas.

Dá pra adivinhar a alegria deles dois ante o verdor deslumbrante das montanhas e vales asturianos, na aragem fresca que perfuma o verão cantábrico. No inverno é diferente, mas ursos gostam muito. Ó esplendor de montes recortados contra o ocaso, silhuetas de puro encanto! Astúrias, Astúrias...  Embalada pelos sons estrídulos de gaitas de fole herdadas de celtas ancestrais, uma velha canção proclama: De la corona del cielo // una esmeralda cayó. // Esa esmeralda es Astúries.

Antes, passaram pela Galícia: monasterios románicos, naturaleza esplendorosa de verdes valles, suaves montañas, hermosas playas, impresionantes acantilados. Y temperatura deliciosa, frente a la ola de calor que agobia estos días a gran parte de España. E mandaram fotos, uma tomada na Praça Maior de Lugo, la bonita e tranquila capital de la província galega que hemos recorrido estos dias, outra, de um cartaz que adorna el paseo marítimo de Foz, otra bonita ciudad lucense. Creo que te gustará leer esas aleluyas galegas.


O blogueiro gostou demais dessas “aleluyas”, tanto  que as posta aqui, para quem não sabe nem nunca soube, ou para espevitar a memória de quem já soube, mas esqueceu: a Galícia é o berço da Língua Portuguesa; traços vivos de DNA da nossa “Última flor do Lácio” (*) ainda estão lá.


(*) Língua Portuguesa – Olavo Bilac



Tempo de incomunicação, tempo ruim

Na postagem precedente, referência ao soneto de Bilac, que O&B acolhe, como sugestão. A Língua Portuguesa pode ser muita coisa, estrela cadente, cometa ou, leviana e precária, uma caravela de luz: em tempo de intolerância, soçobra e se apaga no mar da incomunicação.

Para que, para quem, a Língua Pátria bebida no leite materno e na magia dos primeiros livros escolares? Onde o convívio amável pela palavra, a fraternidade, em tempos de aleivosia e vitupério, tempos sombrios!   

A Língua Portuguesa? Muito mais  sepultura, menos esplendor. Senhor Bom Deus dos Brasileiros, miserere nobis!

Para espairecimento, O&B posta as sonoridades de “Língua Portuguesa”, que remetem a um tempo bom, em louvor da Musa parnasiana de Bilac:

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arroio da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!" 
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho! 

domingo, 29 de abril de 2018

O encontro (*)


(*) Do livro O frágil lenho da ternura, do Edinho (Edson José de Senne), confraria do Varal, Padaria Americana, Ribeirão Preto, e outras tertúlias. A ilustração é de Waldomiro Sant`Anna.

A moça convidou o namorado
para prosear e beber cerveja
em um bar, ao luar.

Eu nunca soube se o bar seria este,
nunca soube se a lua seria aquela
e se o namorado seria eu.

Mas continuo esperando
Com a resignação dos caracóis marinhos.

Eu careço, às vezes, de conjecturas.

domingo, 22 de abril de 2018

BH, BH, que bonita, Paris é aqui mesmo!


É bom andar de turista, flanar, entregar-se ao peripatético da vida e da existência à sombra do arvoredo que se apruma em desordem de muitas cores nas ruas ensolaradas de BH, todos os tons de verde, toda sorte de policromia na alma vegetal da cidade sempre florida. Nesta quadra, o violeta das quaresmeiras prevalece na paisagem e ajuda a filtrar a luminosidade deslumbrante de nossos abris. É tudo muito trivial, banal, e um sujeito distraído mal percebe, porque está tudo ali o tempo todo, como se não pudesse ser de outro jeito, é assim mesmo, como pode o peixe se dar conta de que a água é molhada!

Pres`tenção, cara! Senão você não vê, ao passar pela Rua dos Inconfidentes, entre Alagoas e  Pernambuco, o assédio insólito de um pé de mamão, provavelmente fêmea, a um poste da rede elétrica. Com muita elegância, a árvore ergue suas grandes folhas espalmadas, até alcançar a extremidade do poste que, ao sabor da brisa, afaga com suavidade, o que é raro numa espécie que não é de levantar tão alto suas copas. Se há ternura nisso? Quem sabe! O coração de concreto do poste, porém, parece não se deixar tocar, enquanto vai cumprindo, impávido, seu destino de segurar cabos e relés lá em cima.


Na Rua Paraíba, entre Inconfidentes e Rua Santa Rita, Frei José de Santa Rita Durão, um dos muitos poetas da nomenclatura de nossas ruas, não a “advogada das causas impossíveis”,  a presença incidental de uma réplica das mais singelas da Torre Eiffel no passeio, de repente,  espevita a memória para suscitar analogias ternas, insólitas alegorias, correspondências essenciais no mundo caótico e incoerente. Num livro de Francês dos tempos de ginásio a referência primordial num desenho a bico de pena da torre famosa que, com muita economia de traços, ilustrava um poema de Paul Souchon. Não dava pra reconhecer, então, anacrônico e, avant la lettre, politicamente correto lirismo do poeta, em cujos versos, lá pelos anos 40, 50, ainda cantavam muitos rouxinóis, como se jamais tivessem existido Rimbaud e Lautreamont, e toda a agitação surrealista e dadá não tivesse sido mais que mero devaneio.

Não importa. Um único fragmento não esquecido do poema de Paul Souchon pode aflorar diante da “Torre Eiffel” da Rua Paraíba, na Savassi, com toda candura e sinceridade: Chaque fois, Paris, ta beauté, m`a séparé de ma tristesse!

Veio, então, a paráfrase inevitável: Ah, Belo Horizonte! A brisa leviana e fresca dessas manhãs de abril, em tua luminosidade incomparável, sempre alegra meu coração. (nm)

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Amigos, voos e sonhos em Asas de Bolero


Meu fraternal amigo Lélio postou em sua página na rede eletrônica umas considerações que não poderiam ser mais generosas sobre ASAS DE BOLERO, o livro que publiquei em dezembro, sobre conversas e peripécias de tempos juvenis. Em nenhum momento ele presume de crítico, apenas deixa o breve texto fluir afetuosamente. Isenção não há, porque amigos são assim mesmo, mas inflou o ego do autor e lhe alegrou demais o coração. (nm)
Ei-lo, devidamente pirateado,  para compartilhar com os leitores deste O&B:
“Asas remetem a sonhos e voos, como os de Ícaro e os de infância, a viagens a mundos nunca dantes visitados ou mesmo a épocas e terras dolorosa ou alegremente vividas. É o que nos vem de cara ao acompanhar a saga de alguns jovens de um tempo romântico no qual alimentavam sonhos em um botequim, trocavam pinturas e letras em varais à sombra de imensas árvores, cambiando juras, propostas e propósitos para transformar com radicalidade um futuro que, rapidamente, chegou e mais depressa ainda passou.
Falo do romance de estudantes universitários loucamente entretidos na vontade de agarrar o mundo com as pernas, atrevidos intelectualmente e bebendo nas melhores fontes das artes plásticas, da música e da literatura. O que, também, lhes importava era beber todas e comer muitas, fumar de tudo e dançar colado, beijar na boca e abraçar causas como se fossem coisas, dançar bolero como se fossem óperas, escrever libretos e realizar saraus, escutar caetanos, xicos e betânias, gilbertos, agustins e vanzolins, heriveltos, violetas e dolores... Conheciam a verdadeira história do campônio e sua amada, discutiam pintura de Vermeer a  Van Gogh e a Picasso, de Jean Genet a Bosch...
 A revolução de época era a da Nicarágua e Antônio, o que dançava lindamente bolero e voava nas asas de sua amada Eulália, o que menos arrotava palavras de ordem, foi lutar contra Somoza ao lado dos sandinistas e ajudou a conquistar León e Matagalpa. (E Manágua, por supuesto.)
Tudo acontecia ali, na Praça XV de Ribeirão Preto, à sombra de centenárias figueiras, no bar da Padaria Americana. A narrativa de Nilseu, meu colega de jornalismo, do INDI e da vida comove e nos poetisa com erudição à la limite e recuerdos ao som de um bandoneon...  “Asas de Bolero”, (ed. Código/2017) faz-nos voar e compreender a importância dos Amigos.
Cito Cícero, filósofo e orador de Roma: Omne suum tempus amicorum temporum transmittere - É importante dedicar boa parte do nosso tempo aos Amigos...”
Lélio Fabiano dos Santos

quarta-feira, 14 de março de 2018

Na rede eletrônica somos todos errantes


Minha amiga Alcéa não é a primeira pessoa que conheço a se irritar com os excessos e banalizações de todos os tipos que as redes sociais impõem ao nosso cotidiano. Mas ela expressou sua inconformidade em versos que chegaram a O&B por e-mail, uma forma até convencional de comunicação nesses tempos de tanto vatsap. Não teve remédio senão publicá-los aqui, pelo prazer de compartilhar a bronca fundamentada e bem posta com nossos amigos e leitores. Agora, uma despropositada derivação, talvez porque anda tudo muito errático, erradio: No título do poema, com  a imaginação à solta, a gente pode achar a remissão que quiser, até à “Errante Elissa”, Dido, a rainha de Tiro que, em seu exílio, teve forças para fundar Cartago, e ainda, para seu romance infeliz com Eneias, o herói troiano. (nm)


ERRANTE

Alcéa Romano

Ando com “arg” de whatsap
Que eu não pedi pra chegar
Amanhece o dia bom dia
Nem escureceu boa noite.

E todo dia é assim
Até a segunda feira
E aí já chega bem cedo
Boa semana se queira.

Tem gente que não pensa
Naquele que vai receber
Manda piada e bobagens
Que não quero merecer

Nunca mais liga ou se ouve
A voz de pessoas queridas
De outros ainda bem
Pois há risco de ser ferida

É política... religião,
Bobagens e safadezas
Pouca coisa se aproveita
Disto eu tenho certeza

E o tempo que se gasta
Ouvindo o que não pediu
Dá vontade de responder
Vai pra santa que te pariu

Tem muita coisa que apago
Sem ler e sem ouvir
Pois aquilo já veio antes
E não tenho que engolir

E o tal do instagram,
Do msn do facebook
Este aí que invadiu
A vida cheia de “looks”

Tudo escancarado
Sem nenhum pudor
E ninguém quer saber
Se estou feliz ou com dor

Ainda aventuro enviar
Um mais certeiro email
Tem gente que já se esqueceu
E nem usa mais este meio

Ontem mesmo eu enviei
Algumas coisas pelo correio
Era bom aquele tempo
Que até parecia sorteio

A notícia chegava de longe
Páginas escritas à mão
Faziam correr lágrimas
E que delícia se sensação

O mundo ficou assim
Tudo de perna pro ar
Até parece que um dia
Ele vai mesmo acabar

Mas cada um que se cuide
Daquilo que lhe é importante
Pois a vida vai seguindo
Para todo ser errante

Quem quer ouvir uma voz
Que saia do seu coração
Este aí sabe o caminho
Do que lhe é confortante.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Ouvir o que vale a pena ouvir

Nilseu,

Clóvis está escrevendo e descansando em Monte Alegre do Sul, SP, e está encantado com o lugar. Na viagem de ida, precisou pegar quatro ônibus. No primeiro, de BH a Três Corações, teve como companheiro de assento um senhor que vinha do Mato Grosso, e foi sobre esse encontro que ele escreveu.

Marilia

Clovis Salgado Gontijo Oliveira 

Apesar de um pouco longa, gostaria de partilhar esta reflexão com os amigos andarilhos e com aqueles que acompanham minhas buscas e andanças.

Chi son? Sono un poeta.
Che cosa faccio? Scrivo.
E come vivo? Vivo.


Quando criança gostava de cantar este trecho da célebre ária de Puccini. Décadas depois, continuo a entoar as mesmas perguntas. Outras, nesse meio tempo, descobri em mim. As antigas tinham então respostas curtas e simples, como a própria infância. Hoje, mais que poeta, sou peregrino. O que faço? Caminho. Minha identidade é a busca, a pergunta. Empreendo a marcha para colher respostas. Nesta, como em outras caminhadas, fecho a porta para subir a montanha. Quero estar a sós com as minhas perguntas. Temo a chegada de outras. Há tempo de perguntar e há tempo de responder. Ilusão? Estas palavras o sábio não diz. Mas assim quero crer, para não me perder.

Faço uma pausa na travessia extenuante da vida, mudo de direção, busco uma canção capaz de embalar os meus passos pelo percurso rumo a um “por quê?” talvez sem resposta. Warum? Em outras viagens, acreditei, por angústia ou tentação, nos “oráculos tagarelas”. Incoerência de quem ainda não havia provado e comprovado uma de suas principais matérias de estudo, com fortes ressonâncias na vida: só como graça as respostas são colhidas. De onde então elas vêm? Do silêncio de Deus ou do piar das andorinhas?

Após algumas caminhadas, sei que, quando sintonizado com a minha “solidão sonora”, sou capaz de reconhecer certas fontes de paz. Contudo, também há a resposta que, inesperada, brota da voz do próximo. Se conservo um par de ilusões, outras já perdi. Não sem tropeços, agora sei que as respostas não são pedras prontas a nos aguardar por séculos ao longo da vereda. Há pedras que só se cristalizam a quatro mãos, a duas vozes. Mal ponho o pé na estrada, uma nova voz se apresenta. Seu sotaque gaúcho me acompanha da capital a Três Corações. Quatro horas partindo do mais superficial com destino ao mais profundo.

  Viemos combinando a camisa.

Falou da longa viagem que acabara de fazer, do trabalho, da cidade natal, da mudança a terras mato-grossenses e, até mesmo, de um risco corrido na infância. Mencionou, logo de início, ter tido três filhos: um rapaz e duas moças. Fazia exatamente nove anos que o primeiro, o mais velho, havia deixado este mundo. Precisaríamos de alguns quilômetros de confiança para que aquele senhor de 68 anos desvelasse algo da sua dor maior. Certamente se abriu por encontrar no companheiro de viagem alguns traços do filho: nascido apenas dois anos antes de mim, também fora professor e nunca se interessara em dirigir. Mas, rodovia afora, não só ele se abria. Coloquei-o a par dos meus projetos, relatei frustrações, temores, conquistas, novos desafios. Sentindo, como bom pai, uma lacuna na minha fala, lançou-me a pergunta decisiva. A sua viagem já chegava ao fim. Com sinceridade, respondi e me justifiquei. Refletiu por alguns instantes e, por fim, ponderou:

  Deus nos deu a audição para ouvirmos o que vale a pena. Este é o sábio.

O tempo se estendeu à medida que o motorista reduzia a marcha. Às vezes a colheita mais fecunda se dá no prelúdio da jornada. Apertei com gratidão a sua mão e, emocionado, vi as lágrimas clarearem o azul escuro dos seus olhos miúdos. Ainda acenei para ele da janela do ônibus, enquanto, afobado, remexia com a outra mão a mochila, procurando onde registrar tão precisas palavras. Também desejo ouvir – e, se possível, voltar a ouvir – o que vale a pena. Sinto que a resposta do pai não havia sido pedra pronta. Este é o sábio. E este foi um encontro.
Assim se constroem as respostas para as perguntas que hoje canto.

14 de janeiro de 2018

domingo, 14 de janeiro de 2018

"Piropo" é "piropo", assédio é assédio

Pitigrilli (Dino Segrè) escreveu, em crônica antológica no início dos ano 50, que piropo é uma das mais bonitas palavras da língua espanhola: “Como o piropo, uma espécie de granada resplandecente, com reflexos de chama, esta palavra contém a solidez do mineral e a luz variável do Sol. É uma das mais belas expressões da língua espanhola, dizia eu, no sentido figurado. O seu equivalente italiano complimento, o francês compliment, estão viciados por um defeito constitucional, que certo etimologista original fazia derivar do latim complete mentiri, mentir completamente.”

O escritor acrescenta que piropo “é a primeira palavra que desperta a atenção da bela europeia desembarcada em Buenos Aires. Palavra cálida, luminosa, sonora, que um imaginativo mal informado em matéria de mineralogia poderia confundir com uma flor rubra e amarela, perfumada como um cravo, grande como um crisântemo e atormentada como uma orquídea. Josephine Baker, que neste momento canta suas canções no Rio da Prata, já se apaixonou por esta palavra, que pronuncia à francesa: Pirhopô.”

Como é bonito um pirhopô! teria dito a cantora.

Na paráfrase famosa do poema de Amado Nervo, Le Pera alinha uma delicada sucessão de piropos, como o que se segue: El día que me quieras // Endulzará sus cuerdas // El pájaro cantor. Em "Maria Bonita", Agustin Lara lembra haver adulado Maria Felix com piropos: Te dije muchas palabras, // de esas bonitas con que se arullan los corazones. Muitos piropos, também, na canção  “Maria Dolores”: (...) en tus ojos, en vez de mirada, hay rayos de sol (...) Te mueves mejor que las olas  (...) Envidia te tienen las flores (...) etc., tudo da lavra feminina de Sarita Montiel que, ao fim e ao cabo, renuncia à pluralidade pela unidade monolítica da própria canção que compôs: Y en vez de decirte un piropo, María Dolores, // Te canto un bolero. Talvez mais que a Maria Dolores, Sarita tenha merecido ao longo de sua vida intensa, incontáveis piropos, de Gary Cooper, Hemingway, Indalécio Prieto, o líder socialista espanhol em seu exílio republicano no México, James Dean... Na foto, comprazida, talvez ouvisse piropos do ícone da juventude transviada. Porém, nenhum mais tremendo que aquele do poeta León Felipe:

La Mancha en tí, mujer, y en mi corazón el dardo.

Loura, lourinha, de olhos claros de cristal, // Desta vez, em vez da moreninha, // Tu serás rainha do meu carnaval, piropo bonito, do Braguinha. Antes ele já viera com aquilo de Linda morena que me faz penar, // a lua cheia, que tanto brilha // não brilha tanto quanto o teu olhar.

Aqui, meramente diamante pequeno, mineral, portanto, como a granada, e que também carrega sua fração de Sol, pura luz, um insólito xibiu de palavras apócrifas de grande circulação nos anos 60:

Se cada vez que pensasse em você,
caísse um pedaço de mim,
cadê eu!

As mulheres desses nossos tempos estranhos, como as do século passado, sabem distinguir um piropo para não renunciarem a galanterias a que têm direito. E não precisam de juízos fundamentalistas para reconhecer e repudiar manifestações insultuosas ou assédios grotescos ou brutais, capitulados no Código Penal e que não podem ser postos no mesmo plano do cumprimento devido, compliment, complimento. Ora! Piropo é piropo, afaga o espírito e alegra o coração. Assédio molesta, chateia, ofende e fere, cruz credo! (nm)