Muita petulância, hem?
O sujeito sapeava um carteado. O jogo? Truco. Começou a conjeturar a respeito e acabou em fatuidades. “Interessante. Não empata de jeito nenhum e ainda acha de desempatar muita mão de empenho! Diante de um três, de uma dama, de um valete de qualquer naipe, faz bela figura, embora, confrontado com qualquer outra manilha, empalideça e se apague. Mesmo em boa democracia, muita hierarquia. Pra carta, assim, limitada, a gente pode até achar que há uma certa arrogância no caráter do Sete de Ouros”. Continuou sapeando, mas distanciou-se do jogo: “Esse tipo de soberba não é raro entre as pessoas e expõe, tanto em jovens quanto em velhos, todo o ridículo do descuido com a vaidade; nas mulheres, sobretudo de insólita boniteza, manifesta-se mais como petulância, o que em nada as desmerece”.
De repete, a trucada ruidosa, escandalosa, como é de lei nesse jogo de muito barulho. E um blefe. O pensamento muda de direção, o sujeito dá-se conta de que aquilo atenta abertamente contra desígnios muito bem estabelecidos das cartas, que a gente que joga, supersticiosa, vê como entidades transcendentes, dotadas de vontade própria, sempre conspirando com dolo em desfavor de quem está perdendo. Daí as imprecações do tipo “desgraçado”, “baralho filho da mãe!”.
Mas tu podes fingir que as cartas te amam, pelo menos
“daquela vez”; não estão em tua mão, mas finges que estão e pode ser que dê
certo. Eis a suprema distorção do jogo e do Destino, da vida, em tudo diferente
daquelas imanências que talvez possam ser inferidas de “Um lance de dados
jamais abolirá o acaso”, o poema tipográfico de Stéphane Mallarmé (Un coup de dés jamais n'abolira le
hasard). Capricho da sorte, do acaso, das cartas? Perdoem-nos Santo
Agostinho, São Tomás, São Boaventura e quantos mais: não há transcendências nem
imanências que resistam à esculhambação de um bom blefe. Isso não é simples: às
vezes o jogador dá “pala” de que tem jogo quando realmente tem. E pode fingir
que não tem, quando não tem nada mesmo. É tudo um embuste, cujo ponto mais alto
seria o “blefe ao quadrado”, que Jorge Luis Borges refere no primoroso ensaio, “El truco”, em que conta de dois
mascates, Mosche e Daniel, a cumprimentarem-se na metade da grande planície
russa:
– Onde você vai,
Daniel? – disse um. – A Sebastopol – disse o outro.
– Você mente, Daniel. Diz
que vai a Sebastopol para que eu pense que vai para Nijni-Novgorod, mas você
vai mesmo é pra Sebastopol.
Quando publicou isso, na década de trinta, não escondeu que
se tratava de um velho motivo eslavo que, aqui, ganhou foros de original,
replicado para favorecer a legenda dourada de Tancredo Neves, em campanha pra
presidente. Inventar piada nova não é fácil. Desde os parlamentos do Império temos
adaptações de chistes europeus: minas, ouro, diamante, sabe como é, atraíram
muito cristão novo. Não é de estranhar, pois, a sombra mais ou menos recorrente
de mosches e danieis em variações escorregadias no tema do mineirinho sabido. O
deputado José Maria Alkmim, famoso em seu tempo, meados do Século XX, foi repetida
presença nelas, Tancredo menos, mas teve seus momentos:
Na estação, cumprimentam-se
dois políticos:
– Vai pra Ponte Nova, doutor
Tancredo?
– Não, pra
Muriaé.
– Ummm! ...pra Muriaé, pra eu pensar que vai pra
Ponte Nova, mas é pra Muriaé que vai.
Ô, Borges! Se isso não é o blefe do blefe!
(nm)
(XIX)